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Músicos independentes mineiros se reinventam na quarentena

Com vários lançamentos autorais, artistas atuam em diversas frentes e usam a criatividade nas plataformas digitais para divulgarem discos, singles, EPs e clipes

Por Bruno Mateus
Publicado em 24 de julho de 2020 | 07:02
 
 
No álbum "Até", gravando na Itália, Juninho Ibituruna musicou poemas e textos de amigos Julia Baumfeld/Divulgação

No início de março, o cantor e compositor Juninho Ibituruna partiu para a Europa a fim de cumprir alguns shows e participações em workshops por diferentes países, em uma jornada-turnê que se repete há uma década, ano após ano. Ele faria apresentações na Suíça, na Itália e em Portugal. No mesmo dia em que pôs os pés no Velho Continente, os shows foram todos cancelados, e o “lockdown”, anunciado. Na terceira semana dessa temporada, quando estava em Nápoles para uma residência artística, Ibituruna sentiu o baque do isolamento e se viu em um “processo meio deprê”. O artista, naturalmente, foi buscar alento na música.

Ibituruna, incentivado pela artista circense Liz Braga, começou a musicar textos, poemas e reflexões que recebia de amigos - os escritos e as vozes são de pessoas espalhadas pelo mundo, como Sara Cabral, Brisa Marques, Edinho Ramos, Clarice Panadés, que criou a capa e as artes do projeto, e da própria Liz. O resultado dessa troca está em “Até”, disco com oito faixas lançado na plataforma Bandcamp no início deste mês. Gravado de forma caseira, Ibituruna produziu o álbum, que contou com mixagem do português André Xina; em Santiago de Compostela, na Espanha, o paulistano Maurico Caruso fez a masterização.

“Até”, que será lançado em versão instrumental no dia 30, reflete o “corre” do artista independente, que, muitas vezes, na base do "faça você mesmo", grava e produz seu próprio disco, assume o papel de assessor de imprensa para fazer circular a novidade e se cerca de parceiros, independentemente de onde estejam, para somar forças num trabalho coletivo, que encontra na tecnologia uma aliada essencial para eliminar fronteiras antes intransponíveis. Assim como vários outros músicos, Juninho Ibituruna entendeu que a pandemia não deve travar as possibilidades artísticas – ao contrário, deve ressaltá-las.

“Acho promissor o que está acontecendo, todo mundo está se reinventando, repensando tanto a forma de procurar trabalho quando de criar a canção. Acho bonito e necessário, tenho acompanhado os lançamentos”, comenta o compositor, que agora está em Lisboa, mas não vê a hora de voltar para Itabira, onde mora com a mulher e a filha.

Se a pandemia trouxe uma busca maior pelos conteúdos no vasto oceano da internet, um dos desafios do artista independente é fisgar quem está em busca dessas produções. Divulgar as canções nas plataformas digitais, como todos eles fazem, já não é novidade para ninguém. Talvez, um dos ensinamentos da pandemia seja o de que diferentes linguagens não só podem como devem compor os projetos musicais.

“Sempre tivemos essa ideia de atrelar a música a outras linguagens artísticas e continuamos buscando isso. A galera está mais conectada, isso é positivo. Os artistas têm que tentar se sobressair, usar as plataformas disponíveis para fazer coisas relevantes e pensar novas formas de apresentar o trabalho”, afirma Érico Grossi, percussionista do Marimbando.

O quinteto mineiro lançou, em meados de junho, o EP “Ao Vivo no Motor”, anúncio do que vem por aí no disco de estreia da banda, previsto para o ano que vem. Uma das quatro faixas, “Algoritmo”, ganhou clipe dirigido por Luís Evo. O clipe mostra uma BH esvaziada pela pandemia, e grafismos compõem as imagens que reforçam a identidade visual do grupo.

Foi também durante a pandemia que o belo-horizontino Marcos Frederico compôs “Charada” e finalizou o seu “Marculelê”, álbum instrumental que tem o ukulele como único instrumento e reúne canções de 2014 até hoje. Em um pequeno estúdio montado em casa, ele gravou, mixou e lançou o disco, que tem participação de Rogério Delayon, no fim de abril.

Frederico fez a foto da capa do disco e resolveu atacar de designer. Para ele, a palavra do momento é “reinvenção”. Por isso, o músico, que integra a Orquestra Royal, está investindo em projetos audiovisuais e começando a se familiarizar com o universo dos podcasts, para os quais está compondo trilhas sonoras. “Estou me preparando para buscar novos caminhos. A pandemia exigiu dos artistas uma reviravolta para usar a criatividade em prol da sobrevivência. O grande desafio está aí: como usar essa criatividade”, afirma.

A tabelinha entre single e clipe também foi a jogada do mineiro Lafetah, que passa quarentena em BH, mas mora em São Paulo há um ano, onde estava gravando seu próximo álbum, “O Bestiário”, que vai ficar para o primeiro semestre do ano que vem. O vídeo de “Lobo no Divã” foi feito a distância e tem imagens conceituais inspiradas nos anos 80, “uma onda meio David Lynch”.

O artista diz que foi preciso manter a calma quando a pandemia impossibilitou várias ideias que ele tinha, mas, ao mesmo tempo, foi nesse período que ele iniciou outros projetos e parcerias. “Há uma solidariedade entre artistas nesse momento”, pontua.

Sobre o fato de a cena autoral e independente de Minas ter feito da dificuldade uma chance de renovação, com discos, EPs e singles refletindo toda uma diversidade e riqueza musical, Lafetah valoriza o que tem sido feito por aqui: “O Brasil inteiro está de olho em BH. São muitos estilos, cabe tudo. O lance é olhar um para o outro, unir forças e sustentar o movimento para que ele não empaque”.

Retrato de um tempo

A própria condição da quarentena influenciou o cantautor Pedro Santos na escolha do lançamento, em maio, do single “Ciranda da Saudade”, canção que vai integrar o álbum “Feliz Cidade”. “Acabei escolhendo uma música mais calma, mais relaxante. Pensei nisso porque observei que as pessoas estão consumindo muito esse tipo de música, até por uma questão de estar com as emoções à flor da pele, por questões emocionais gritantes”, comenta.

O disco teria todo um esquema de divulgação com shows no bom e velho estilo pré-pandemia, mas as restrições fizeram com que o artista adiasse o lançamento para 2021. Contudo, Santos já adianta que pretende soltar outros singles na praça nos próximos meses.

Segundo o flautista Maycon Lack, que lançou “Caminho do Vento” na primeira quinzena de julho, disco com interpretações das obras de Bach e Telemann que ele também considera propício para o momento de introspecção, a quarentena foi realmente assustadora em um primeiro momento e a impressão que se tinha é de que tudo ficaria parado.

No entanto, ele também pondera que “o corre independente existe a todo momento” e agora não seria diferente. “Claro que temos algumas particularidades, e uma dela é tentar humanizar o processo que temos hoje, que é tecnológico”, observa. Para o músico, a pandemia também deixou evidente o papel da economia colaborativa em torno da arte: “Os artistas vão se ajudando, o desafio é fazer circular esse movimento”.