Música

Nascido há cem anos, compositor Paulo Vanzolini tem legado exaltado

Gravado por Maria Bethânia, Chico Buarque, Clara Nunes e Nelson Gonçalves, ele criou os sucessos “Ronda e “Volta por Cima, que entrou para o dicionário

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 25 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Paulo Vanzolini compôs sucessos como “Volta por Cima” e “Ronda”, que recebeu quase 200 regravações, de nomes como Maria Bethânia e Alcione Foto: Gustavo Lourenção/Divulgação

Depois de inúmeras tentativas, o sujeito desiste de dar cabo da própria vida, pois tem “um corpo fechado” que não dá “chance pra urubu”, e nem vai “morar lá no Caju”. Mas no dia 28 de abril de 2013 não teve jeito, e o jornalista Jotabê Medeiros foi, por conta própria e vencendo o desinteresse da redação, cobrir o velório de Paulo Vanzolini, autor do irreverente “Samba do Suicídio”, e para quem tantas vezes havia ligado justamente a fim de colher depoimentos, “que ele sempre atendia e comentava de forma concisa e perfeita”, para obituários de gigantes da MPB. Aos 89 anos, vítima de pneumonia, o Cemitério da Consolação, em São Paulo, tornava-se a morada definitiva do compositor nascido há 100 anos, criador, por exemplo, do sucesso “Volta por Cima”.

Jotabê estava curioso para ver quem compareceria àquele ato final, se cantariam “Ronda” – não cantaram –, e deparou-se com “um leque diversificado”. “Esteve lá o embaixador Celso Lafer, o percussionista João Parahyba, a cantora Cristina Buarque, o cartunista Paulo Caruso, o maestro e arranjador Eduardo Gudin. E os fãs, que sabiam que estavam se despedindo de um artista que compreendeu a alma humana”, recorda Jotabê, que, “como todo brasileiro, ou, pelo menos, paulista”, foi apresentado à música de Vanzolini “por meio da canção ‘Ronda’, que se tornou um hino da maior metrópole da América desde os anos 1950, quando foi gravada por Inezita Barroso”. O “status de hino”, no entanto, incomodava Jotabê, “porque tornava ‘Ronda’ meio obrigatória…”, diz.

Da boemia ao dicionário

Paulistano descendente de italianos, Vanzolini foi convocado pelo Exército em 1945, e, à noite, patrulhava a zona boêmia da cidade. A “arguta observação dos sentimentos que nos nivelam a todos, como o ciúme, a raiva, a sensação de fracasso, o desgosto na humanidade”, como salienta Jotabê, o levou a compor, mesmo sem tocar nenhum instrumento, o samba que só chegaria ao topo das paradas décadas após o lançamento. Em 1967, o publicitário Marcus Pereira fundou o seu selo de música independente, e, com arranjos do iniciante Toquinho, colocou na praça o LP “Onze Sambas e Uma Capoeira”, onde “Ronda” comparecia na voz de Cláudia Moreno. O abre-alas era com Chico Buarque, interpretando o “Samba Erudito”.

Dez anos mais tarde, com a produção de Eduardo Gudin, a cantora Márcia concedeu aos versos de paixão e ressentimento a sua versão definitiva: “De noite eu rondo a cidade/ A lhe procurar, sem encontrar/ No meio de olhares espio/ Em todos os bares/ Você não está”, entoava, antes do desfecho de provocar arrepios: “E nesse dia então/ Vai dar na primeira edição/ Cena de sangue num bar/ Da avenida São João”. Maria Bethânia, Angela Maria, Nora Ney, Cauby Peixoto, Jair Rodrigues, Alcione, Emílio Santiago e Fagner também a regravaram, contabilizando quase 200 registros, enquanto Caetano Veloso utiliza parte de sua melodia no arremate de “Sampa”. Eduardo Gudin conta que travou amizade com Vanzolini “muito antes de virar parceiro”.

Com 16 anos, ele o admirava na boate Jogral, fundada pelo pelo violonista Luiz Carlos Paraná, onde Vanzolini costumava dar canjas. “Era uma coisa caseira, nem tinha microfone”, relembra Gudin, cuja timidez o impedia de ir falar com o ídolo. Até que, de certa feita, o próprio homem de bigode robusto e inseparável cachimbo veio ter com ele, para elogiar a música “Gostei de Ver”, composição de Gudin defendida por Márcia e pelo conjunto Os Originais do Samba no V Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1969. A sintonia foi imediata e eles passaram a se frequentar mutuamente. Em 1977, por meio do jornalista Aluízio Falcão, que assina composições musicais sob o pseudônimo J. Petrolino, chegou a Gudin a letra de “Mente”, num papel.

“O Vanzolini não é um cara de parcerias, foi algo muito raro”, orgulha-se Gudin, que musicou o samba lançado por Clara Nunes, no LP “Guerreira”, numa gravação “exuberante, uma das mais bonitas do repertório”. Para saudar a memória do amigo, Gudin dirigiu o espetáculo “Vanzolini 100 anos – Sacode a Poesia”, apresentado em São Paulo, com óbvia referência a um dos versos mais repetidos do sambista, entoado a plenos pulmões em estádios de futebol, e que, inclusive, tornou-se verbete de dicionário: “Levanta, sacode a poeira/ Dá a volta por cima”. Lançada pelo cantor Noite Ilustrada, em 1962, “Volta por Cima” passou a designar, nas páginas do Aurélio, “ato de superar uma situação desagradável, problemática, difícil”, tal sua incorporação popular.

Do sambista ao cientista 

Mônica Salmaso, presente no show em homenagem a  Paulo Vanzolini, admite que, só recentemente, se deu conta de que o compositor “fazia ‘sambas de causos’, com histórias maravilhosas que precisam ser ouvidas do início ao fim”, e cita “Praça Clóvis”, uma das suas preferidas, que flagra o eu lírico contente pois, ao ter a carteira batida, livrou-se do retrato de seu “atraso de vida”. “Acho genial, um curta-metragem, adoro ‘francamente, foi de graça!’”, diverte-se Mônica, reportando-se ao desfecho impagável da composição. Eduardo Gudin vai pela mesma toada. “O Vanzolini sabia contar uma história com maestria, com uma técnica perfeita de tema e vocabulário, é da estirpe de Noel Rosa, Chico Buarque…”, enaltece.

Gudin ainda destaca o fato de, mesmo sem tocar instrumento, Vanzolini ter criado um estilo melódico, e do alcance popular de sua obra, a despeito da formação intelectual do artista, que não deixa de comparecer, por exemplo, em “Samba Abstrato”, pleno de perspicácia. O jornalista Jotabê Medeiros concorda. “De tudo ele fez samba, que é a forma mais popular da música brasileira, o que revela também o que ele era. Cientista formado em Harvard, Vanzolini foi até o cume da ciência e da tecnologia e sua conclusão era a mais fundamental de todas: a igualdade é o nosso destino”, sustenta. Diretor do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP) durante 30 anos, Vanzolini obteve o título de Doutor na área nos Estados Unidos e nunca largou o ofício.

Conciliando ciência com música popular, Vanzolini deu nome a mais de 15 espécies de répteis e anfíbios e produziu pérolas que continuam tocando gerações. “Conheço tudo que ele compôs, mas acho que as mais conhecidas do público são as obras-primas mesmo”, avalia Gudin, mencionando “Ronda”, “Volta por Cima” e “Capoeira do Arnaldo”. A falta de reconhecimento, na opinião de Gudin, não é privilégio de Vanzolini. “É o que mais acontece. O sucesso é uma questão de acasos, e ele fez muito sucesso com essas músicas que eu citei”, diz. Jotabê lembra que Vanzolini “era crítico demais em relação à própria obra, tanto que dizia que só tinha feito um disco que ‘prestava…’”.  

Apesar dessa “abordagem autodepreciativa”, o compositor nunca deixou de se relacionar “com um leque imenso de outros artistas, e sua arte de compositor nunca foi isolada e estanque, sempre esteve em contato amplo com diversas correntes e sensibilidades”, pontua Jotabê. No entender de Mônica, que não chegou a conhecê-lo pessoalmente, Vanzolini “era uma pessoa que levava a vida muito a sério”. “Ele era rígido e apaixonado por seu trabalho e também pela sabedoria dos brasileiros dos interiores, os saberes caipiras. Esse Brasil é o Brasil das conversas, das histórias, dos ‘causos’”, salienta. Gravado apenas em “Paulo Vanzolini por Ele Mesmo”, de 1979, o “Samba do Suicídio” vive na “cabeceira afetiva” de Jotabê por uma série de qualidades.

“Tem um pouco de chanchada, de Buster Keaton, na saga de um homem do povo que declara sua própria falência, mas é incompetente na tarefa de dar cabo da própria vida. Tem um senso de humor refinadíssimo, é ousada. O tema, por exemplo, era tabu nas publicações da época. É uma construção poética urbana e paulistana, que incorpora linguagem de rua. É uma maravilha”, conclui. Vanzolini, com sua despretensiosa sagacidade, vivia a dizer: “Samba é que nem osso, vai na boca de qualquer cachorro”.