ENTREVISTA

O lugar pensável e possível 

Magazine entrevista a performer, diretora de teatro e professora Eleonora Fabião

Por Gustavo rocha
Publicado em 23 de março de 2014 | 03:00
 
 
Coordenadora do curso de direção teatral da UFRJ, a performer Eleonora Fabião coordena, neste domingo e terça-feira em Belo Horizonte, atividades de intercâmbio entre os grupos teatrais do projeto Acto 3: Espanca! (BH), Companhia Brasileira de Teatro (Curitiba), Grupo XIX (SP) e Magiluth (Recife). Abaixo, ela fala da aproximação da performance com o teatro e as outras artes. felipe Ribeiro/divulgação

Você constrói uma trajetória de aproximação entre o teatro, a performance e outras diversas áreas. Quais são as referências que te norteiam?

Referências... Digamos que trabalho com materiais. Materiais diversos. Textos, gente, lugares, conceitos, acontecimentos, mais gente, palavras, imagens, cadeiras, mesa, voz, chão. Sobretudo trabalho com encontros – para evidenciá-los ou para promovê-los. As referências que informam a cena expandida (ou “campo ampliado” para citar Rosalind Krauss) e seus processos de criação dizem respeito à absorção de qualquer matéria e questão do mundo; à absorção dos mais diversos materiais, metodologias, dispositivos, suportes, espaços, durações e agentes. Sim, claro, há os gêneros: teatro, dança, artes plásticas, cinema, etc. Porém, não à toa, me apresento como performer e teórica da performance, ou seja, como artista e pensadora num campo expandido que experimenta não apenas com toda sorte de materiais, mas com a própria noção de “arte”. Me dedico à tarefa de compreender, a cada vez, em meio a cada circunstância e através da vivência de cada material, o fazer da performance, o fazer da teoria e o fazer da vida como práticas indissociáveis. Ou seja, as referências que norteiam esse caminho são extremamente amplas e múltiplas. Para pensar e fazer a cena expandida, interessam filosofia, jardinagem, agricultura, jornalismo, manifestações, a última geração de smartphones, oceanografia, a minha vizinha Mariana, o pão da padaria, seu preço, quem o faz, as matérias primas utilizadas para fazê-lo e a história destas matérias primas. Importam as questões políticas e estéticas, teóricas e práticas, históricas e imediatas sempre compreendidas de forma entrelaçada. O norte é inequívoco: buscar gerar vida na vida, valorizar a humanidade do humano, desautomatizar modos de cognição, percepção, relação e ação. 
 

Você tem uma carreira acadêmica já de alguns anos. Em Belo Horizonte, vemos uma certa dificuldade dos professores da universidade (Federal) de teatro em estabelecer trabalhos artísticos fora do âmbito (ou dos limites) do campus. Como sua carreira artística dialoga com a carreira de pesquisadora? E como você vê essa relação de professora-artista, artista-professora?

Vou voltar à questão dos materiais. Trabalho basicamente com três materiais: a performance, a escrita e o ensino. São três vértices de um triângulo que de tão dinâmico acaba por se transformar em círculo. Ou melhor, transformar-se numa esfera compacta e vibrante. O que quero dizer com isso? Que a performance que realizo nasce na pesquisa que desenvolvo para lecionar um curso ou no momento mesmo da escrita. Que a escrita se deriva da performance realizada ou do curso lecionado. Que o diálogo com os orientandos e demais estudantes gera novas questões que me levam para a rua ou para a mesa de trabalho. E daí, inevitavelmente, me trazem de volta para a biblioteca e para a sala de aula. A sala de aula é um dos espaços performativos mais potentes que conheço. Um grupo de pessoas encontra-se em torno de um interesse comum e colabora para elaborá-lo; ali somos todos sabedores e ignorantes, todos interessados em encontro e troca num ambiente de pesquisa e experimentação com continuidade. Daí que te digo: não há nenhuma diferença entre a artista e a professora porque o trabalho é um só. Uma vez um estudante na UFRJ me perguntou qual era a minha visão pedagógica. Eu respondi que o trabalho em sala de aula era uma prática artística – que não me interessava falar de arte sem ser fazendo arte. Compreendo e concebo as aulas e workshops que leciono como parte do meu trabalho artístico. 


Você vem a Belo Horizonte para mediar um encontro de grupos de teatro. Onde entra a performance no trabalho desses quatro grupos do Acto 3!?

Tenho o maior interesse no trabalho desses grupos. Tive a oportunidade de conhecer alguns deles no Rumos Teatro, promovido pelo Itaú Cultural em São Paulo, e quero seguir conhecendo muito mais. Lá eu era responsável pela mediação dos debates entre os participantes. O trabalho que a Brasileira realizou com o Espanca!, por exemplo, me interessou muitíssimo pela sofisticação dramatúrgica e pelo tipo de sensibilidade – uma combinação de humor, delicadeza e força. O projeto chamava-se “Troca de Pacotes” e os dois grupos enviaram diversos materiais por correio, um para o outro, que serviram como mote para a construção dramatúrgica (a barraca de camping é inesquecível!). A performance entra no trabalho desses grupos como referência teórica, histórica e estética para a criação de cenas onde curto-circuitos representacionais são ativados; cenas compostas por uma geração de artistas que reconhecem e exploram a indissocialidade entre fazer estético e fazer político; grupos interessados em experimentação psicofísica, em hibridação de gêneros, em cena ampliada. Como a performance indica, experimentar implica na suspensão de a prioris (comportamentais, institucionais, mercadológicos, ontológicos). Como a performance sugere, todo lugar é pensável e possível, toda duração é pensável e possível, todo tema é pensável e possível, todos os tipos, procedências e quantidades de envolvidos, todas as maneiras de produção são já material de trabalho.


Você acha que o teatro tem flertado mais com a interdisciplinaridade?

Não acho, tenho certeza que estamos articulando mais as diversas disciplinas e indisciplinando fronteiras rígidas. Mas vale dizer que o teatro é por natureza interdisciplinar. O teatro funciona em rede desde sempre. É tecnologia de ponta.


A performance tem um caráter do “aqui e agora” muito forte e se influencia muito pelas relações sociais que cercam o performer. Como você vê isso no teatro? Você acha que a produção contemporânea tem bebido desses preceitos performáticos?

Como sugere a teórica Josette Féral, a aproximação com a performance tem sido determinante e vem marcando a cena teatral contemporânea de maneira contundente a ponto da autora sugerir o termo “teatro performativo” para nomear o movimento. Termo este que propõe em contrapartida ao difundido “teatro pós-dramático”, cunhado por Hans-Thies Lehmann, pois enfatiza que a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento. Ela diz: “Se há uma arte que se beneficiou das aquisições da performance, é certamente o teatro, dado que ele adotou alguns dos elementos fundadores que abalaram o gênero”. Proponho então algumas características desta cena performativa que, como você diz, se dá no aqui-agora das relações pessoais, locais e sociais: o desmonte de mecânicas clássicas do espetáculo; a desconstrução da representação e da ficção; a reavaliação do ofício do ator e a valorização de sua contribuição dramatúrgica; a investigação de dramaturgias pessoais (até biográficas); a investigação do corpo e da corporeidade como material dramatúrgico; a aderência ao concreto do espaço social e físico onde acontece; a utilização de procedimentos e materiais habitualmente encontrados em outras linguagens artísticas.