Há cinco anos, Ariel Nobre tomou uma decisão: ele ia se matar. Homem trans, o publicitário e artista visual havia acabado de adotar o nome e mudar oficialmente o gênero, mas não tinha perspectiva profissional nem de afeto. Porém, antes de se suicidar, ele decidiu escrever em uma carta suas últimas palavras: “preciso dizer que te amo”. Essa frase o fez renascer. Nobre a transformou em projeto de vida, filme – que ganhou editais, prêmios e exibições fora do país – e lema de todos os dias. “É um pacto de vida, continuo escrevendo ‘preciso dizer que te amo’ todos os dias, tudo que faço é permeado por isso. É uma prevenção pública do meu próprio suicídio”, ele conta.

“Preciso Dizer que te Amo”, sobre a resiliência e a relação de jovens trans com o corpo e com a vida, é um dos quase 200 filmes que fazem parte do LGBTFlix, iniciativa (acesse aqui) do coletivo #VoteLGBT, que, desde 2014, busca aumentar a representatividade desse universo em todos os espaços, principalmente na política.

A ideia surgiu em reuniões e foi lançada em 9 de abril, em meio à pandemia do novo coronavírus. E não por acaso: o objetivo da plataforma é diminuir a sensação de isolamento e atenuar os impactos da quarentena em pessoas que estão em situação vulnerável e sofrem em ambientes tóxicos – muitas vezes nos próprios lares.

“O LGBTFlix é um projeto de arte totalmente gratuito. Não tem cadastro, não tem nada a ver com plataforma de streaming. É um esquema para caber todo mundo”, explica o artista visual, ativista e membro do #VoteLGBT, Gui Mohallem.

O catálogo é colaborativo e, até segunda-feira (27), contava com 186 produções – o número cresce a cada dia – das mais diversas abordagens narrativas e estéticas. O foco são os curtas-metragens, mas também há alguns longas. Todas as obras foram dirigidas por cineastas LGBT+ brasileiros, das mais variadas regiões do país, e abordam questões ligadas ao universo da comunidade. O cardápio é dividido por temas: família, gênero, raça, religião e sexo.

Essa diversidade, segundo Mohallem, que é mineiro de Itajubá e mora em São Paulo, mostra a potência do audiovisual voltada para as questões da população LGBT+. “Você tem uma demanda, realizadores e realizadoras precisam ter um espaço para conversar com seu público. É um cinema muito potente, desesperado por encontrar esse público”, comenta Gui, que não esperava tanta repercussão em tão pouco tempo: “Em um dia ruim, temos 5.000 acessos, e estamos triplicando o número inicial de filmes”.

Representatividade

Outro objetivo da plataforma, além de dar visibilidade à produção audiovisual existente na comunidade LGBT, é dar a possibilidade para que as histórias desse universo – com suas questões particulares e específicas – sejam contadas pelos próprios protagonistas. “Temos muitos problemas de aceitação, e é importante discutir como os LGBTs foram representados durante a história: ou era a figura cômica, ou a patética, doente. Depois, virou a figura atormentada que se mata no final. No cinema contemporâneo, a representação da figura LGBT ainda não dá conta do espectro inteiro, da nossa diversidade”, diz Gui Mohallem.

“É muito importante que a gente possa contar nossa história”, destaca a belo-horizontina Aisha Brunno. A atriz e travesti está no elenco de “Ardenti Maleficis”, curta dos diretores Filipe Cruz e Gabriella Carvalho, integrantes da Mal dos Trópicos Produções, de BH. O filme conta a história de Mari, uma mulher negra que se confronta com seu passado em uma visita a um museu, onde tem contato com seus ancestrais.

“A arte vai nos dar esse suporte de transformação, de revolução. O site tem trabalhos maravilhosos, e é urgente que patrocinadores, empresas e pessoas que tenham o poder na mão olhem para esses projetos”, ressalta Aisha. 

Desde que dirigiu “Preciso Dizer que te Amo”, Ariel Nobre transformou seu ativismo em sentido de vida. Para ele, a proposta da LGBTFlix vai ao encontro de um desejo particular muito forte: “Quero que a gente possa contar nossas histórias a partir de nossas perspectivas e lucrar com elas”. 

Ao colocar seu filme na plataforma, Nobre parece ter cumprido um plano que começou em 2015, quando pensou em se matar, e teve seu desfecho em 2018, ano de lançamento do curta. Segundo o mineiro, que hoje mora em São Paulo, sua arte tem o compromisso de criar novas realidades, novos futuros e uma imagem de vencedoras para as pessoas trans.

“Senti que estava finalmente entregando o filme para o Brasil, o ‘Preciso Dizer que te Amo’ parece que foi feito para esse momento”, avalia o diretor. 

Pesquisa online

O #VoteLGBT lançou, nesta terça-feira (28), um questionário online para identificar impactos em saúde, emprego e renda entre lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis no período da pandemia. O objetivo da iniciativa, que conta com participação de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e da Unicamp, é reunir respostas de 10 mil pessoas. Com os dados em mãos, o coletivo irá solicitar políticas públicas específicas para a comunidade LGBT+. A pesquisa pode ser respondida de forma anônima neste link.

Em cartaz: confira três dicas de filmes disponíveis na LGBTFlix

> “Guaxuma” (2018), de Nara Normande. Curta-metragem inspirado na infância da cineasta na praia de Guaxuma, no litoral Norte de Alagoas. Eleito melhor curta da 46ª edição do Festival de Gramado, em 2018. Veja aqui.

> “Território de Mim” (2018), de Aline Cortes, Daniela Moura, Elis Cordeiro, Lorena Oliveira, Raul Dias e Yggor Araújo. Com fortes depoimentos, documentário aborda a violência sofrida pela população LGBT+ e a busca por um espaço seguro e pelo significado de família, amor e respeito. Prêmio do júri popular do FilmWorks Film Festival (FWFF) 2019. Veja aqui. 

> “Positive Youtubers” (2017), de Leandro Godinho. Gravado totalmente online a partir do gravador da tela do computador, o documentário mostra a perspectiva de quatro brasileiros que abordam suas experiências vivendo com o HIV de forma positiva. Veja aqui.