Os dados são preocupantes, e as prospectivas, não muito animadoras. Na manhã desta sexta-feira, o Instituto Pró Livro e o Itaú Cultural apresentaram à imprensa os resultados da 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que, como o próprio nome já sinaliza, se debruça sobre os hábitos de leitura no país. Vale dizer que esta é a primeira edição na qual o IPL ganha o reforço do Itaú Cultural, o que já de pronto permitiu a ampliação do número de entrevistas de cinco mil para oito mil (realizadas em 208 municípios, com pessoas dos mais variados perfis). A coletiva de apresentação dos apontamentos, concedida a 60 jornalistas de todo o país, aconteceu, claro, virtualmente, e contou com as presenças de Eduardo de Saron, diretor do Itaú Cultural (IC); Marcos Pereira, vice-presidente do Instituto Pró Livro; Zoara Failla, coordenadora da pesquisa; e Rose Rosendo, diretora de contas do IBOPE Inteligência.
Realizada antes da pandemia do novo coronavírus, a pesquisa constatou uma diminuição de cerca de 4,6 milhões de leitores no país. Um dado, claro, desalentador. "É preciso juntar forças, pois os dados que a pesquisa revela são impactantes. Acho que a gente precisa fazer uma reflexão inclusive para avaliar o tamanho do desafio que temos pela frente, pois a leitura, todos nós sabemos, é uma ferramenta de acesso ao desenvolvimento pessoal e social. Possibilita a transformação das pessoas", afiançou Zoara.
Aplicada em domicílio, a pesquisa concluiu que a única faixa etária na qual houve um registro de ampliação do hábito da leitura foi a que abarca crianças de 5 a 10 anos. "Todas as outras registraram queda, em especial, aquela a partir dos 14 anos", salientou Zoara. "E é muito importante que esse dado em particular seja aprofundado, que os motivos de isso estar acontecendo sejam levantados, já que impacta no ensino fundamental".
No cômputo geral, os números divulgados colocam as redes sociais, e a internet de um modo mais amplo, como as, digamos, grandes vilãs desta história. "O uso da internet cresce disparado a partir de 2011", constata Zoara, reconhecendo que um número percentual grande de pessoas da chamada classe A (onde a queda no índice de leitura foi mais sensível, atingindo o patamar de 9%) está usando seu tempo livre para ficar nas redes sociais e na internet. "Se por um lado muitas pessoas alegam falta de tempo para ler, vê-se que mais tempo está sendo usado para as rede sociais".
Ao mesmo tempo, Zoara ressalva que as redes sociais não estão sozinhas no rol de adversários da leitura. "Constata-se uma queda no número de livros indicados pelas escolas, existe a questão da crise ecônomica... A gente tem que somar esses fatores todos, tudo isso contribuiu para a redução". Marco complementa que a internet é de fato um fator ("sem dúvida entra na competição pelo tempo das pessoas") a ser considerado, mas entende que "os fatores macroeconômicos também pesaram".
Rose, por seu turno, adiciona que o universo virtual concorre com o hábito da leitura até mesmo com as próprias ofertas culturais, como assistir a filmes disponíveis em plataformas de streaming, mas também acredita que são as interações sociais, como as viabilizadas pelo Whatsapp, que tomam mais tempo.
Um outro fenômeno que aparece na pesquisa é a dificuldade de acesso à leitura em função do analfabetismo funcional. Neste quesito, o levantamento coincide com o realizado pelo Instituto Paulo Montenegro (Inaf), ou seja, 29% da população podem ser considerados analfabetos funcionais. Significa que três em cada três em cada dez brasileiros não compreendem o que leem.
No que tange a eventuais influenciadores pelo gosto pela literatura, o professor assume a pole position desta edição, superando a figura materna, que estava à frente na edição anterior. No entanto, quando soma-se mãe e pai, a família passa à frente. "E aqui a gente confirma a importância da família nesta mediação, no despertar do interesse pela leitura. Quando a gente abre a faixa etária, é nessa, a dos 5 anos, que a mãe aparece com 28% das indicações", esclarece Zoara.
A escolaridade dos pais tem um impacto muito maior entre leitores do que entre não leitores. Quanto à principal forma de acesso aos livros, 41% dos ouvidos afirmaram comprar (seja em lojas físicas ou internet). Um contingente de 31% afiança nunca ter comprado um livro, e 67% não compraram um livro nos últimos dois anos. A dita elite compradora contabiliza 17 milhões de pessoas, mas, curiosamente, são os 27 milhões que não estão neste estrato os principais consumidores de livros. O "tema" (da obra) é o vetor que mais influencia na hora da compra do livro, mas um bom percentual que cresceu nesta pesquisa cita o título como chamariz e, ainda, o nome do autor, além do preço
No caso dos que não compram um exemplar, mas ainda assim estão no grupo de leitores, um lugar de acesso mais imediato aos livros seriam as bibliotecas. No entanto, Zoara diz que, diante da pergunta '"Existe uma no seu bairro?", o número de respostas afirmativas caiu. "E fica pergunta: será que estão fechando?".
Dos que frequentam sempre as bibliotecas, 17% que avaliam como bons os serviços, em particular, o atendimento, mas o pior item avaliado é o acervo: 43% dizem não encontrar os livros pelos quais estão interessados. Um dado animadpr: 33% vão à biblioteca para buscar livros por vontade própria. E o que, segundo eles, suscitaria um maior interesse em frequentar esses centros? A maioria responder: ter mais livros, e, ainda, livros novos.
Na coletiva, Rose assumiu a fala para lembrar que a leitura da Bíblia toma a frente entre as pessoas ouvidas que, no momento da pesquisa, não estavam estudando - juntamente a outros livros de cunho religioso. A leitura da Bíblia, vale dizer, também aumenta de acordo com a idade. No público estudantil, após os livros didáticos, a preferência é ocupada pelos de contos.
Sobre a indicação - que, claro, não deve ser confundida com o quesito influência no hábito da leitura - o professor aparece na ponta, junto à figura do "amigo". "A gente consegue ver que, quanto mais jovem, mais a influência da escola se faz sentir, já a indicação dos amigos aumenta conforme avança a idade. A questão do universo digital é uma diferença nas perguntas aplicadas nesta edição, e sobre indicação (de títulos para aquisição), a gente perguntou se havia acontecido via internet, mas percebemos que essa ainda não é uma forma de acesso que a população em geral utiliza. No entanto, a faixa dos 18 a 29 anos menciona com mais frequência esse tipo de indicação", diz Rose
Em relação a formato, a maior parte prefere, ainda, os livros em papel, só 8% citaram o formato digital - e, na verdade, apenas 44% ouviram falar do formato digital.
Machado de Assis e Monteiro Lobato são os dois nomes mais citados, sendo que esses autores se repetem em outras listas, mas Rose pontua que esse fenômeno pode ter mais relação com a questão da memória - por serem nomes mais conhecidos, podem acorrer à mente mais prontamente.
A pesquisa detectou que o interesse por literatura foi suscitado com mais ênfase pelas escolas, mas os filmes também têm uma grande influência (dado o grande número de adaptações para o cinema) na escolha da obra.
Indicações de digital influencers ainda aparecem timidamente, assim como as feitas por slams e saraus (citados só por 6% dos ouvidos), embora esses sejam eventos considerados bem promissores e importantes. No contingente de entrevistados, apenas 14% dos entrevistados estiveram, nos últimos 12 meses, em eventos literários - bienais, feiras, festas literárias, para citar alguns exemplos.
No momento das avaliações, ao final da coletiva, Marco diz entender que o que a pesquisa mostra, na série histórica, "é que não estamos indo para lugar nenhum". E endossa que o investimento em profissionais formadores do hábito de leitura seria uma medida das mais importantes para mudarmos essa rota. "Claro, a gente precisa de bons acervos, de boas instalações, mas o formador, o contador de histórias, o bibliotecário, esse profissional, a gente não está investindo nele. Nos mapeamentos que o Instituto Pró Livro faz, a gente vê nas ONGs, por exemplo, quantas atividades existem por aí, Brasil afora. Mas o estado brasileiro infelizmente não está prestando atenção a esse aspecto, que é fun-da-men-tal. E está na lei que é também papel do estado".
Zoara concorda que é fundamental investir nesta figura do mediador, principalmente quando as crianças vêm de famílias mais vulneráveis. "Vários estudos apontam que é na infância que o indivíduo começa a ter o seu interesse despertado pela ficção. E quando a gente olha que a partir dos 11 anos o estudante está deixando de gostar da leitura, o Marco tem razão (sobre a importância da figura do mediador). E quem é o mediador nesta faixa? A família não assume esse papel, mesmo na classe A, que até percebe isso na infância, mas não depois. E, claro, não estamos falando, nesta idade, de um pai ou mãe ler para o filho, mas, sim, ajudá-lo na escolha do livro, por exemplo. E voltando aos mais vulneráveis, de fato a gente precisa pensar políticas públicas voltadas para formação do professor que seja mediador para a leitura necessária. Aquela que traz conhecimentos, que interessa, que desperta emoções que a criança precisa. Não adianta ter um acervo atualizado - isso é um ponto importante, mas é preciso também formar esses agentes. Falta vontade política, perceção da importância de formar o leitor".
Marco acrescenta que a atual pandemia acelera a necessidade de refundar o país, num movimento que deságue em uma sociedade que entenda que o livro é um bem e que tem papel social importante na formação do individuo. "É difícil alguém que diga 'Eu sou contra livro'. Mas tem gente que diz: 'livro é para os ricos', e isso aí nos remete ao conceito da Belíndia, que é metáfora do (economista Edmar) Pacha para o país, ou seja, que temos uma classe muito rica, que corresponderia à Bélgica, e uma mais vulnerável, que seria a Índia. Eu não quero viver nesse pais, e sim em um de inclusão. Claro, em toda sociedade você tem pessoas muito ricas e as mas carentes, mas entender o papel do livro é o que está em discussão. Os dados indicam que é preciso entender isso".
Marco também lembra que o IBGE 2030 deve ratificar que o Brasil deixará de ser um país jovem para ser uma nação de idosos. "Então, temos dez anos para acelerar essa história. De alguma forma, já foram 12 anos quase perdidos para o letramento, e temos só dez anos pela frente! E para sair dessa crise profunda, para termos um letramento, o primeiro passo é ter consciência da gravidade da questão. Por isso, fico muito feliz de o Itaú Cultural ter se associado a uma pesquisa tão importante para tentar conscientizar e mobilicar todos, senão, vamos chegar em 2030, nos descobrir um país velho, e perceber que a gente ficou no mesmo lugar. O nosso desafio, como sociedade, é saber que o tempo passa, gente! E que precisamos de uma aceleração para chegarmos a um lugar melhor. O desafio é para toda a sociedade: empresas, estados... Vamos construir um Brasil leitor".