Transição, um caminho progressivo de uma fase a outra. As mudanças podem ser motivadas por anseios ou necessidades. Algumas são opcionais, outras, inevitáveis. Quem sabe bem desses processos são as mulheres acima dos 50 anos (ou 50+). Em um período da vida em que muitas transformações estão ocorrendo ao mesmo tempo, elas precisam lidar com as dores e as delícias dessa realidade. Nesse percurso, a maioria delas acaba se esbarrando em diversos tipos de preconceito, talvez o mais presente deles, o etarismo - estereótipos e discriminações direcionados a pessoas com base na idade.
Eliane Kreisler, 63, sentiu profundamente a intolerância no âmbito profissional. A empresária de São Paulo (SP), diferentemente de outras mulheres, nunca havia sonhado em empreender. Ela, que se aposentou aos 56 anos, queria continuar no mercado de trabalho, mas percebeu que não conseguiria quando começou a mandar currículo e receber respostas negativas. “As empresas descartam veladamente as pessoas acima de 50, porque acham que estão desatualizadas,” enfatiza.
Diante da impossibilidade de seguir nesse modelo de atividade, Eliane decidiu abrir o próprio negócio. A partir da sua dificuldade, ela criou a consultoria em gestão e transição de carreira - EK- com foco em pessoas acima de 50 anos. “Quando o mundo corporativo me disse não, tive que repensar a maneira como eu queria seguir atuando. Então, fui empreender. E aí, descobri que era algo totalmente viável para alguém da minha idade. Entendi que começar tarde não era um problema.”
Uma pesquisa da empresa Ernst & Young e da agência Maturi de 2022 ilustra bem o quanto a disseminação do etarismo é comum no mercado de trabalho. O estudo realizado em quase 200 empresas no Brasil mostrou o perfil do mundo corporativo para pessoas com mais de 50 anos. A maioria das companhias pesquisadas tinha de 6% a 10% de pessoas 50+ em seu quadro de funcionários. Cerca de 78% das organizações consideraram-se etaristas e evidenciaram barreiras para contratação de trabalhadores nessa faixa de idade.
O preconceito não fica restrito apenas ao mercado de trabalho. Com base em relatório da OMS de 2021, uma em cada duas pessoas é etarista, ou seja, tem preconceito contra os mais idosos. O levantamento foi feito com mais de 83 mil entrevistados de 57 países de todos os continentes. Um estudo da Universidade de Michigan reforça essa tese, ao mostrar que 80% das pessoas acima dos 50 anos já foram vítimas de algum tipo de ageísmo, outro termo usado para o idadismo.
Mais barreiras
Outro obstáculo encontrado por Eliane Kreisler foi a forma como o trabalho sempre se apresentou a ela. A empresária conta que toda sua trajetória profissional foi baseada no regime celetista, o formato mais comum de regularização da relação trabalhista, mas não o único. “Sempre fui empregada com carteira registrada. Só conhecia essa possibilidade, por isso tive que me reinventar quando decidi abrir um negócio.”
Essa era a realidade da também hoje empreendedora, Neide Arantes, 64. A empresária de Cuiabá (MT), Centro-Oeste do país, trabalhou por quase 20 anos na área administrativa, na iniciativa privada, e mais 15 como servidora pública. “A minha geração foi formada para passar em concurso, por isso, não tinha capacitação para o empreendedorismo. Mas aí, quando vem a aposentadoria, é uma baita transição porque você ficou tanto tempo em um só lugar, e de repente, a ruptura chega de forma veloz,” destaca.
Os desafios que envolvem a aposentadoria são muitos, mas há oportunidades também. Segundo Juliana Seidl, idealizadora e consultora da Longeva, que ajuda as pessoas a se planejarem para esse momento, parte desse público que pretende continuar ativo profissionalmente busca por mais flexibilidade, autonomia, e deseja fazer algo que goste. “Anteriormente, essa geração queria oferecer estabilidade financeira para suas famílias. Agora, depois de aposentados, eles almejam desenvolver suas competências e viver sonhos.”
Neide é um retrato dessa situação. A empresária conta que foi desafiador começar, aos 60 anos, em uma carreira que ninguém sabia que era o que ela realmente apreciava. “A expectativa de todo mundo era que eu fosse advogar na área eleitoral, porque meus dois filhos e meu marido estão nesse ramo. Então, eu já tinha uma estrutura formada, e a tendência era essa. Mas, fui na contramão, e em 2018, abri um escritório - Pipou Consultoria e Coaching - junto com a minha filha.”
Pandemia e solidão
Em 2020, no auge da pandemia de Covid-19, Joice Liz, 54, decidiu realizar o sonho de empreender. A então assistente social de Porto Alegre (RS), Sul do Brasil, trabalhou até os 50 anos na iniciativa privada com serviços direcionados a idosos. Aos 40, ela fez um “ensaio” para tentar sair do modelo corporativo, mas só conseguiu 10 anos depois. Foi quando Joice viu a oportunidade aparecer a partir das necessidades de sua mãe, de 86 anos, e do pedido de amigos para que ela os orientasse no cuidados com os familiares idosos.
“Vi que podia conciliar o meu propósito com o protagonismo do meu negócio. Então, fui me aproximando mais desse universo, e resolvi - junto a duas colegas - apostar na ideia. Abrimos então o Instituto Girassol Longevidade com Autonomia. A gente construiu um negócio focado muito no envelhecer com qualidade de vida. Desde então, estamos trilhando esse caminho de empreender, que nesse país é muito difícil porque há muitas exigências e poucos incentivos,” afirma.
Se por um lado, o sonho estava realizado, mantê-lo passou a exigir algumas habilidades de Joice. Uma delas foi a de saber superar o sentimento de solidão. “A gente se sente muito sozinha, por vezes solitária, para desbravar todo esse universo do empreendedorismo. Para a gente foi ainda mais difícil porque éramos muito técnicas, então tivemos que contactar o Sebrae e outras consultorias para nos auxiliar na construção do negócio, a fim de que ele tivesse uma sustentação,” recorda.
A idealizadora e consultora da Longeva, Juliana Seidl, reforça que as mudanças a partir do empreender implicam, inclusive, em solitude. “A pessoa terá que fazer a sua própria gestão do tempo, e isso se torna difícil porque ela terá que se organizar, por exemplo, para se conectar com as pessoas, se não vai vir a solidão. Às vezes, o pequeno empresário não tem condições de contratar alguém ali no primeiro momento ou de ter uma equipe. Então, isso demandará muito dele emocionalmente também.”
Sacrifícios por algo maior
A participação da mulher no mercado de trabalho é tema de constantes debates. Neste ano, por exemplo, a americana Claudia Goldin, 77, conquistou o Nobel de Economia por suas pesquisas que mostravam como o sexo femino foi representado no ambiente corporativo ao longo dos séculos. A economista explicou que muitas das disparidades, como a de salário e de oportunidades, são resultados influenciados pelas responsabilidades das mulheres com o lar e a família.
Morando com a mãe e o irmão, e tendo que dividir as despesas de casa, Maria Natália da Paixão, 50, teve que adiar, por algumas vezes, o sonho de ter um negócio. A costureira, que mora no bairro Alto Vera Cruz, na região Leste de Belo Horizonte, prestou serviços durante anos para lojistas e feirantes da capital. Sempre sonhando em ter a sua marca, ela esbarrava na questão financeira porque não podia investir no seu projeto tudo o que ganhava, uma vez que também precisava ajudar com as contas do lar.
“As máquinas e o material de trabalho não são baratos. Mas, fui economizando e comprando aos poucos. Eu tinha feito alguns cursos, e em determinado momento falei: agora chegou a vez de fazer uma coisa para mim. Vou criar a minha marca e produzir peças voltadas para o público infantil. Assim, comecei. Hoje posso dizer que tenho um negócio que é meu,” conta.
Quando iniciou a produção própria, Maria Natália se deparou com a dificuldade de precificar os itens que ela confeccionava. Então, ela procurou o Grupo Cultural Meninas de Sinhá, que oferece diversas formações e oficinas para os moradores da região do Alto Vera Cruz, e se matriculou no curso de educação financeira. “Aprendi a otimizar o dinheiro e a comprar os materiais sem desperdícios. Também entrei na aula de bordado e participei de outras vivências do projeto.”
A costureira, no entanto, não parou de sonhar. Ela agora pretende terminar de construir a própria casa, e levar o espaço de trabalho - que, até então, funciona em um cômodo pequeno da casa da mãe - para o novo cantinho. “Sonho também em ter a minha marca reconhecida, não só em Belo Horizonte, mas também internacionalmente. Quero muito que dê certo e que eu consiga viver do que amo, por isso torço para que Deus me abençoe,” finaliza.
Longevidade x envelhecimento
Dois termos muito discutidos quando se trata do público 50+ são longevidade e envelhecimento. Esses conceitos, apesar de distintos, estão correlacionados. O envelhecimento populacional se refere à proporção de pessoas idosas no mundo, e a longevidade, diz respeito à duração de uma vida mais longa que o comum. A ligação entre eles é que quanto mais longeva, mais velha a pessoa é.
O Censo 2022 mostrou que o Brasil está mais envelhecido e feminino. Os dados reforçam que, como as mulheres vivem cerca de sete anos a mais que os homens, elas ganharam mais participação nos indicadores. É comum que a expectativa de vida do sexo feminino seja maior no mundo todo, mas no Brasil essa diferença em torno de três anos é potencializada, dentre outros fatores, pela violência urbana, que mata mais o público masculino.
Atualmente, a longevidade não é vista especificamente conectada ao tempo de duração da vida humana, mas como forma estendida de qualidade do envelhecimento. Para a empresária Joice Liz, 54, embora a população tenha ficado mais velha muito rápido, algumas pessoas não se prepararam para isso. “Culturalmente falar de envelhecimento é falar de finitude. Mas, precisamos entender que envelhecer acontece, é natural, mas a longevidade pode ser construída,” declara.
A empreendedora Neide Arantes, 64, é um reflexo desse movimento. Ela conta que adota hábitos, como dança, atividades físicas e conexões com pessoas para se sentir ativa. “Não luto contra o envelhecimento, luto para um envelhecer saudável. Até porque não dá para pensar em se aposentar com 60, e ficar, no mínimo, até os 80, parada olhando para o tempo.”
Envelhecer também não é um problema para Eliane Kreisler, 63. “Estou aprendendo isso porque a minha mãe e a minha avó tinham uma perspectiva de vida menor do que a que tenho hoje. Mas, não é fácil. Assim como também não foi simples começar a andar, falar, ter espinha ou entrar na menopausa. Costumo dizer que estou trocando pneu com o carro andando, porque enquanto aprendo a envelhecer, estou tentando me manter ativa,” finaliza.