Entrevista

A lenda de Joana que teria se tornado papisa na Idade Média 

Craig M. Rustici - Escritor e professor

Por Da Redação
Publicado em 08 de julho de 2014 | 03:00
 
 
“Joana se disfarçou de homem e por volta de 1100 foi nomeada papisa” Foto: Zack Lane - Hofstra University P

É fato ou lenda que existiu uma papisa que tomou assento no Vaticano na Idade Média? Quem fala sobre o assunto é Craig M. Rustici, 50, professor titular e presidente do departamento de inglês da Universidade de Hofstra e autor do livro “The After Life of Pope Joan”, publicado pela University of Michigan.

Existem evidências e dúvidas sobre a mulher que se vestiu de homem, conquistou a confiança de Roma e teria se tornado a primeira mulher a ocupar a cadeira de pontífice. Ela realmente existiu? Em meu livro “The After Life of Pope Joan”, eu digo que provavelmente não. De qualquer forma, durante séculos, aqueles que têm tentado provar a veracidade dessa lenda têm enfrentado um obstáculo aparentemente intransponível: um espaço de tempo de 400 anos entre o momento do alegado pontificado de Joana e as primeiras referências escritas que expressam incertezas. Esses obstáculos atravessaram o século XX e não desencorajaram artistas, dramaturgos, romancistas e cineastas de recontar e recriar a história de Joana e nem impediu alguns crentes fervorosos de tentar novamente mostrar que isso é verdade.

Qual o relato mais antigo?

O escrito sobrevivente mais antigo é a “Chronica Universalis Mettensis”, do dominicano Jean de Mailly. Ele narra a carreira de“um papa feminino, sem nome, que não estava na lista de bispos de Roma porque era uma mulher que se disfarçou de homem e, eventualmente, em 1099, tornou-se papa por seu caráter e talento”.

Há evidências de que a papisa teria ficado grávida e sido assassinada?

No texto de Jean há uma frase em latim aliterado “Petre, Pater Patrum, Papisse Prodito Partum” (Pedro, pai dos pais, trair a gravidez da mulher papa), que estaria gravada no túmulo da papisa. Ele, entretanto, diz não ter certeza se a história a que ele se refere é verdade, pois o referido texto está no infinitivo e tem palavras como “exigir” que significa “a ser verificado” ou “para ser consultado em”. Logo depois, na “Chronica Minor”, um frade franciscano anônimo de Erfurt parece ter se baseado na crônica de Jean. Descrevendo a carreira de um pseudopapa que era na verdade uma mulher travestida, esse autor ecoa Jean, relatando o caráter aparentemente bondoso da papisa e falando a respeito da revelação de sua gravidez. Importante como Jean, o franciscano de Erfurt, reconhece a obscuridade ou incerteza em relação aos detalhes de sua narrativa quando o texto cita simplesmente “os romanos” como fonte e observa que o nome do papa (papisa) e o ano são desconhecidos.

Há outras evidências sobre sua existência?

Sim. Mais ou menos na mesma época, mas escrevendo com um gênero muito diferente, o inquisidor dominicano e pregador Etienne de Bourbon compôs uma narrativa da papisa também embasada no relato de Jean. Como Jean, ele relata que uma mulher sem nome, disfarçada como um homem, passou de secretária da cúria para cardeal e depois, por volta de 1100, para papisa. Etiennetambém ecoa Jean quando afirma que ela deu à luz em público e foi arrastada atrás de um cavalo (por meia légua) e apedrejada até a morte. Embora Etienne vagamente cite “The Chronicles” como a fonte de sua breve narrativa sobre a papisa, sua dívida para com Jean é clara, especialmente desde o prólogo. O texto mais longo em que essa narrativa aparece, “Tractatus de Diversis Materiis Praedicabilibus (Tratado sobre Materiais Diversos para a Pregação)”, Etienne reconhece Jean como fonte geral. Como o título de seu texto sugere, Etienne estava escrevendo um tratado amplo sobre temas de sermões, em vez de uma história autoritária.

Quando teria sido o pontificado de Joana?

Segundo o “Chronicon Narrative”, de Martinus Polonus, teria sido imediatamente depois do papa Leão IV (847-55), mas ele também revela incertezas. Aqui está o relato completo: “Depois desse Leão, o inglês Joan nasceu em Mainz, reinou dois anos, sete meses e quatro dias e morreu em Roma. Seu pontificado foi vacante por um mês. Essa pessoa foi uma mulher que em sua juventude vestiu roupas de homem, foi levada para Atenas por um certo amante. Ela se tornou proficiente em vários estudos, ninguém se igualava a ela, então mais tarde em Roma, como leitora do trivium (gramática, lógica e retórica) teve professores tão importantes como alunos e ouvintes. Ela tinha tanta reputação em Roma, no que diz respeito à sua vida e erudição, que foi eleita por unanimidade papisa. No entanto, durante o seu pontificado uma pessoa íntima dela a engravidou. Não sabendo a hora do parto e tomada pelas dores enquanto seguia entre o Coliseu e a Igreja de São Clemente, ela deu à luz, morreu no mesmo lugar e acredita-se que tenha sido enterrada lá”.

Quer dizer que os relatos históricos deixam mais dúvidas do que certezas?

Pelos relatos, o fato de Joana ter sido do sexo feminino e reinado como papa foi suficiente para que seu nome não constasse do catálogo de santos papas. Construções passivas do tipo “é afirmado”, “acredita-se”, “diz-se” obscurecem as fontes de “Chronicon Narrative”. A lenda da papisa deriva em grande parte de relatos escritos. Pelo menos um deles anuncia a sua própria incerteza (“a ser verificado”) e foi composto 400 anos após a suposta carreira de Joan e traz erros talvez devido a uma anterior tradição oral.

Quando teria sido seu papado?

Teria começado em 1099 ou 1100 de acordo com Jean de Mailly e Etienne de Bourbon, mas em 854 ou 855, segundo Martinus Polonus.

Quais são as evidências de que isso realmente aconteceu?

Além dos relatórios escritos, os crentes na lenda citaram mudanças na rota das procissões papais por Roma e elementos de rituais de coroação papal como prova do papado de Joan. Um busto do papa Joan apareceu na Catedral de Siena durante o século XVI e temos registros da ordem para remove-lo, fornecendo evidência não necessariamente do pontificado de Joana, mas na crença de que séculos mais tarde ele supostamente ocorreu.

Joana teria feito um bom papado?

Alguns relatos dizem que Joana ordenou bispos e consagrou igrejas. Um comentarista do século XV, Martin le Franc, afiram que, ao contrário de outros papas, Joana não abusava do poder, não desfrutava de simonia (tráfico de benefícios religiosos) ou heresia.

Ela ficou grávida de quem?

São várias versões. Alguns dizem que ela foi engravidada por um cardeal romano, outros dizem que pelo amante (um estudante ou monge), que foi o primeiro que a acompanhou quando ela começou a viajar disfarçada de homem.

Ela foi assassinada pelo povo?

Alguns relatos afirmam que ela foi assassinada por uma turba romana, alguns dizem que ela morreu no parto e alguns que ela sobreviveu após seu depoimento e que seu filho cresceu e se tornou bispo de Ostia.

Porque a Igreja escondeu esse fato?

O busto do papa Joan que apareceu no século XVI em Siena demonstra que a Igreja Católica inicialmente não escondeu a lenda. No meio do século XV, a Igreja Católica enfrentou a heresia hussita, precursora da reforma protestante, e os primeiros escritores católicos começaram a questionar a veracidade da lenda da papisa até que, em 1562, um autor católico desmentiu a lenda. Por outro lado, os protestantes a usaram para demonstrar a corrupção da falibilidade papal e sugerir que, se o papa fosse realmente o chefe da Igreja cristã, então a Igreja tinha sido decapitada durante o pontificado de Joana.