Identidade

Anseios da Geração Z fortalecem o movimento genderless na moda

Respondendo a demandas feministas e LGBTQIA+, moda agênero ganha tração fora das passarelas

Por Da Redação
Publicado em 09 de dezembro de 2021 | 03:00
 
 
Modelos vestem peças da grife LED, que, em novembro de 2021, participou da 52ª edição da São Paulo Fashion Week Foto: Thi Santos/LED/Divulgação

“Menino veste azul, e menina, rosa”. Mais do que representar uma lógica sociocultural binária, atrelada a rígidos padrões de expressão de gênero e de sexualidade, essa frase, popular entre segmentos mais conservadores da população, expressa como a moda ainda é usada para reforçar estereótipos de identidades masculinas e femininas. Segundo esse pensamento, alguns objetos, roupas e atividades seriam mais apropriados para os homens, vistos como fortes e provedores, enquanto outros seriam mais indicados para as mulheres, vistas como frágeis e amorosas. 

Hoje, contudo, esses modelos sociais estão postos em xeque em um mundo que, cada vez mais, parece disposto a discutir e desconstruir paradigmas antes invioláveis. É nesse contexto de maior liberdade para se exprimir a própria identidade que a moda, antes um instrumento que reforçava o binarismo cis e heteronormativo, se revela uma potente ferramenta de subversão de fronteiras simbólicas. Expressão máxima desse fenômeno é o movimento genderless, que pensa o vestuário de maneira agênero ou multigênero. Nesse caso, não faz sentido pensar em departamentos exclusivos para peças masculinas ou femininas. As roupas, afinal, são projetadas para vestir todos os corpos, desde que a pessoa se sinta bem com a peça escolhida. 

O designer de moda Célio Dias lembra que, em tese, uma pessoa lida socialmente como masculina poderia consumir itens do departamento feminino de uma loja, se assim desejasse. Mas ele situa que a própria separação de espaços e a forma de divulgação dos produtos, por si, reforçam a ideia de que as roupas estão subordinadas a um recorte binário de gênero. E é justamente ao se desfazer dessas distinções desde a criação até comercialização do vestuário que o movimento genderless se diferencia da moda convencional. 

“É uma mudança que acontece no cerne desse trabalho criativo. Isto é, quando estou pensando em uma nova coleção, meu ponto de partida não é ‘fazer roupa para homem’ ou ‘fazer roupa para mulher’. Minha ideia é criar algo que vai vestir uma pessoa que vai se sentir bem daquela maneira”, diz. “Mas, para funcionar, essa outra forma de pensar a moda tem que ir além do momento da concepção. Por isso, quando vamos construir a campanha, que envolve uma série de profissionais, evitamos fazer um direcionamento baseado em gênero e sempre partimos do princípio de que o consumidor final é que saberá se aquela peça é boa para ele”, observa. 

Dias observa que as grandes marcas estão mais atentas ao crescente interesse dos consumidores por um vestuário mais diverso e menos atrelado à representação de padrões sociais muito rígidos. Mas nem sempre foi assim. “Quando comecei a LED, há cerca de oito anos, esse debate ainda era muito incipiente no Brasil”, comenta. Ele próprio não pensava muito no tema. “Foi algo meio instintivo, porque tive uma criação muito livre, graças à minha mãe e à minha avó”, reconhece. 

“Ainda há um grande desafio pela frente” 

A grife Remexe Favelinha, que há quatro anos despontava no aglomerado da Serra, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, também produz, hoje, roupas pensadas para vestir pessoas de quaisquer identidades de gênero ou orientação sexual. “Para nós, foi uma coisa muito orgânica. A gente não pensava muito nesses termos, não estava muito por dentro desses debates. Acho que é algo que tem a ver com o nosso funcionamento”, detalha Kdu dos Anjos, artista e idealizador do centro cultural Lá da Favelinha, lembrando que, norteada pela sustentabilidade, a marca se notabilizou por adotar um processo de criação em que há a reutilização de tecidos. “Então, a nossa costureira-chefe, a Carla Santos, fazia as peças pensando mais no que ela tinha em mãos, de forma que o foco nunca foi gênero”, cita. 

Embora celebre que mais coletivos e pequenas marcas tenham ganhado espaço ao apostar em uma proposta de moda mais democrática e diversa, Kdu lembra que, nesse mercado, o movimento genderless, ainda que crescente, é minoritário. “Estamos falando de uma indústria que não é inclusiva, que não é sustentável e que tem diversos problemas, entre eles casos de racismo, de misoginia, de LGBTfobia”, critica. “Esses novos modos de fazer, que são propostos por algumas raras iniciativas, estão longe de ser a regra. Ainda há um desafio grande pela frente”, aponta. 

Em termos de aceitação do público, no entanto, Kdu percebe uma mudança significativa. “Lembro que lá nos primórdios, quando começamos com o Remexe, um cara super-hétero comprou para ele um vestido, que tinha um corte de blusão. Na época, eu não estava muito inserido nesses debates, fiquei surpreso”, comenta. Hoje, ele próprio recorre a um vestuário lido socialmente como “feminino”. 

“Eu gosto de ousar, porque aqui, na comunidade, tem uma atmosfera de respeito. As pessoas me conhecem e gostam de mim, então tem até uma coisa engraçada de pensarem se vão ou não me zoar”, observa. “Mas ainda tem muita gente que acha que calça jeans é coisa de homem e saia, coisa de mulher… Então, se eu visto um cropped, que eu acho muito sexy, ainda tem a galera que olha torto”, reconhece, pontuando que, em alguns ambientes, a subversão desses papéis de gênero chega a ser perigosa. “Uma coisa é fazer isso ‘no close’ ou na passarela, outra é fazer isso no dia a dia”, pontua. 

Geração Z

Segundo pesquisa realizada pela agência J. Walter Thompson Innovation Group nos Estados Unidos, as pessoas nascidas, em média, entre a segunda metade dos anos 1990 e o início dos anos 2010 estão mais sensíveis a temas como gênero e sexualidade, buscando imprimir essas preocupações também na forma como se vestem. 

De acordo com o inquérito, 56% dos entrevistados que representavam a geração Z disseram utilizar termos neutros ao se referir a outras pessoas, contra 43% dos millennials. Em relação ao entendimento da não binaridade na moda e o consumo de itens de vestuário, 56% dos “Z” garantiram ter comprado alguma peça identificada socialmente como de um gênero considerado não condizente com o seu. Já entre as pessoas da geração anterior, 43% admitiram ter feito o mesmo. 

Moda e política 

Historicamente, é possível localizar a moda genderless como um desdobramento da revolução de gênero que parte de movimentos feministas e LGBTQIA+. Significa dizer que, por exemplo, ao usar saias, um homem cis não se torna protagonista dessas lutas. No máximo, ele pode demonstrar, com esse ato, maior abertura para rediscutir as formas de representação da masculinidade – o que, por sua vez, não é pouco. 

Nesse sentido, a pesquisadora Laise Lutz Condé de Castro constata que “o vestuário é acionado nos discursos dos movimentos feministas sempre associado a uma cadeia de restrições que compõem o gênero feminino”. Para ela, o modo de se vestir tornou-se parte crucial do processo de distanciamento entre as vivências femininas e masculinas, criando fronteiras difíceis de serem rompidas e reforçando ainda mais os papéis sociais de cada gênero. Portanto, “impondo às mulheres um estilo de vida diferente do homem burguês provedor, sendo estas ora ornamentos de seus maridos, ora impossibilitadas de executar tarefas do dia a dia com mais agilidade devido aos seus trajes mais complexos”. 

“A partir disso, é plausível a associação da moda somente a um caráter opressor. Porém, o que faz o vestuário ser tão interessante enquanto objeto de estudo é justamente o seu outro lado, sua outra face, que traz à tona todas as suas potencialidades de subversão de fronteiras simbólicas. Por meio do simples ato de vestir, é possível comunicar de forma não verbal seus ideais e subverter barreiras de gênero muito bem delineadas”, anota Laise no artigo “O vestuário feminino como campo de lutas de emancipação das mulheres”, publicado em 2017, durante o 13º Women’s Worlds Congress, realizado em Florianópolis, quando a autora integrava o Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Linha do tempo

Coordenador do curso de design de moda da Universidade Federal de Minas Gerais, Tarcisio Luiz D'Almeida Alves lembra que o modo de se vestir se transformou ao longo da história, sempre tendo como prisma certos ideais de gênero.

“Já na era do Barroco e Rococó, na Europa, tivemos um primeiro registro de inversão. Ainda que a gente não tivesse uma noção de moda naquela época, havia uma noção de indumentária. Até então, o processo de se vestir do homem era muito mais pomposo, recorrendo a muitos apetrechos. Mas isso muda. E a partir daí, ainda no século XVIII, é a mulher que passa a adotar toda essa pompa ao se vestir”, diz.

O pesquisador cita que outra importante transição ocorreu entre os séculos XIX e XX. “É quando começamos a ter os primeiros registros de uma moda que passa a ganhar classificação de unissex. A (estilista francesa) Coco Chanel, inclusive, optava por cortes de cabelo mais curtos, em uma sinalização que conversa com esse movimento, que busca pensar em uma moda que não faça distinção entre masculino e feminino”, cita.

Ainda no século XX, com o surgimento de diversas tribos urbanas, o vestuário se consolida como expressão de comportamento e de identidade. “E, agora, nas décadas mais recentes, com o fortalecimento das pautas feministas e LGBTQIA+, começamos a ter outra releitura de expressão de moda, de forma que o termo unissex já não resolve. É a partir daí que surge o movimento genderless”, examina.