Dia do Futebol

Como o esporte que é paixão nacional entra em campo contra o Alzheimer

Projeto Revivendo Memórias recorre à história do futebol para tratar pessoas com demência

Por Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2022 | 03:00
 
 
Projeto Revivendo Memórias usa a história do futebol no tratamento de pessoas diagnosticadas com a Doença de Alzheimer Foto: Unsplash

Produto importado, sim, mas de tal forma integrado à cultura nacional que virou lugar-comum dizer que o Brasil é o país do futebol – ou a “Pátria em Chuteiras de Ouro”, como já escreveu o jornalista e cronista esportivo Nelson Rodrigues.

Histórias para provar o argumento não faltam, a começar pelos craques brasileiros que se tornaram entidades no folclore futebolístico, sendo ainda hoje reverenciados em todo o mundo. As tantas superstições que habitam o cotidiano de qualquer torcedor, de qualquer time, reforçam a tese de que o esporte bretão fez do Brasil a sua casa. Aliás, tamanha é a paixão que não é difícil encontrar situações insólitas que revelam como torcer pelo time do coração significa muito mais do que vibrar com um placar favorável ou sofrer com um desfavorável. Assumindo um lugar de identidade nacional, não são raras as histórias de quase devoção pelos ídolos eternos do nosso futebol. Algumas dessas histórias estão no livro “A Pátria em Sandálias da Humildade” (ed. Realejo, 2016), do escritor Xico Sá. Na publicação, ele conta que chegou a ouvir um torcedor dizer que doaria ao “mestre Sócrates” o próprio fígado se, com o gesto, pudesse salvar a vida do ídolo corintiano. Escritor e anônimo terminaram abraçados, entre lágrimas, comovidos pela força que o esporte irradia para muito além dos gramados.

E agora, em mais uma prova definitiva de como a relação com o amor pela camisa ultrapassa os 45 minutos regulares de uma partida e se integra à vida dos torcedores, o esporte vem sendo um instrumento para o tratamento de pessoas diagnosticadas com a doença de Alzheimer – uma condição neurodegenerativa crônica, que corresponde à maioria dos casos de demência, chegando a um número entre 60% e 80% desses casos, e afeta memória, habilidades cognitivas e comportamento, chegando a prejudicar a capacidade de o indivíduo afetado desempenhar atividades básicas do dia a dia.

Pioneiro no Brasil, o projeto Revivendo Memórias, do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFM/USP), em parceria com o Museu do Futebol, tem ações para estimular pacientes acometidos pela enfermidade a lembrarem momentos vividos na infância e na juventude, usando a história futebolística como gatilho.

Vale lembrar, o Ministério da Saúde recomenda que o tratamento da doença de Alzheimer – que deve afetar mais de 140 milhões de pessoas até 2050, tendo sua maior prevalência a partir dos 65 anos – seja multidisciplinar. Nesse contexto, intervenções psicoterapêuticas possibilitam melhorar a qualidade de vida e bem-estar, assim como aspectos cognitivos como memória autobiográfica, atenção, habilidades de conversação e algumas condições neuropsiquiátricas como ansiedade e depressão.

História

“Resumidamente, este projeto se dá por meio de atendimentos personalizados realizados pelo Núcleo Educativo do Museu do Futebol de São Paulo em conjunto com profissionais do Hospital das Clínicas, estimulando os pacientes a ativarem suas memórias afetivas relacionadas aos acervos da exposição principal do museu, a fim de promover benefícios psicossociais, como uma melhora do bem-estar de indivíduos com Doença de Alzheimer, de seus familiares e cuidadores”, descreve Guilherme da Silva Antes em seu trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de psicologia da Universidade Federal de Santa Maria do Rio Grande do Sul (UFSM-RS), no qual se debruçou sobre a iniciativa.

O pesquisador cita que Carlos Chechetti, pesquisador e diretor do projeto, começou a gestar o “Revivendo Memórias” após perguntar para seus professores do Hospital das Clínicas o que a paixão poderia fazer por pessoas com comprometimento e declínio de memória. Interessado em investigar a questão, ele encontrou no Football Memories Scotland, do Scottish Football Museum, na Escócia, a sua inspiração.

Richard McBrearty, diretor de projetos do Football Memories Scotland, conta que a iniciativa escocesa surge, como uma fagulha, em 2008. Foi quando houve uma reunião de historiadores de futebol no estádio Hampden Park, localizado em Glasgow. Na ocasião, um dos participantes relatou seu trabalho comunitário com encontros de idosos fãs de futebol – alguns deles com demência e que não se lembravam sequer como haviam chegado até o encontro ou o que haviam comido no café da manhã. “Ao confrontar esses idosos com imagens de jogadores e eventos de até 50 e 60 anos atrás, ele percebia uma ‘transformação incrível’ neles”, indica Silva Antes, sinalizando que, confiantes no potencial dessa ação, os historiadores conseguiram apoio do Scottish Football Museum e, em 2009, lançaram um projeto-piloto, que acabou resultando no surgimento do programa Football Memories Scotland, elevando o status comunitário da ação a algo de proporção nacional no país britânico.

“Em 2018, ao entrar em contato com os responsáveis pelo projeto escocês, Chechetti conta que foi convidado para conhecê-lo. Viajando àquele país e acompanhando pessoalmente o trabalho lá realizado, o pesquisador brasileiro firmou parceria no sentido de trazer a ideia do Football Memories Scotland até nosso país. Essa transposição se iniciou sob o nome de ‘Revivendo Memórias’ dentro do Hospital das Clínicas, e posteriormente encontrou no Museu do Futebol de São Paulo (principalmente seu núcleo educativo) um aliado, com o qual o projeto foi sendo adaptado ao contexto brasileiro”, prossegue o estudioso.

Dinâmica

Em entrevista ao psicólogo Guilherme Silva Antes, Tatiane Mendes, supervisora do núcleo educativo do Museu do Futebol, explicou que, além da variedade de temas, também é considerada a época em que ocorreram acontecimentos importantes para os participantes. Após o fim da visita, é proposta a atividade lúdica “Escale a Sua Seleção”, em que o idoso é estimulado à reflexão e à análise crítica, tendo a oportunidade de escolher 11 jogadores para compor o seu time ideal.

“Nesse processo, várias memórias afetivas são revividas, além de ser possível retomar momentos da própria visita que antecedeu esta atividade. Sobre isso, Leonel Takada, neurologista do Hospital das Clínicas, pontua que as paixões (e memórias relacionadas) das pessoas atendidas pelo projeto são usadas para estimular suas habilidades cognitivas e diminuir o isolamento pelo qual passam. Takada ainda destaca que o objetivo do Revivendo Memórias é fazer com que as pessoas se lembrem de fatos da vida delas e, com isso, sintam algum prazer em poder recordar e conversar com outras pessoas a respeito dessas memórias, tudo isso facilitado pelos educadores do Museu do Futebol”, anota Silva Antes, lembrando que, especificamente sobre os pacientes com doença de Alzheimer, a neurologista Sonia Brucki alerta que, ao tratar este tipo de demência, é preciso ter o cuidado para não isolar o indivíduo, estimulá-lo o máximo possível com atividades sociais e prazerosas e cercá-lo de sua família e amigos.

Resultados

No artigo “O projeto Revivendo Memórias como alternativa de tratamento para a doença de Alzheimer”, Guilherme Silva Antes descreve alguns dos principais resultados destacados por pesquisadores que integram a iniciativa.

“Carlos Chechetti expõe que há uma melhora do bem-estar (reportada tanto por pacientes quanto por seus familiares) e um engajamento nas atividades, que infelizmente é ausente no cotidiano destas pessoas”, cita. Já Sonia Brucki explica que, por acontecer no Museu do Futebol, os atendimentos promovidos pelos profissionais da saúde ganharam um caráter mais social, diferentemente do que acontecia quando a ação ocorria em ambiente hospitalar. Por fim, “Leonel Takada observa que há uma melhora no humor dos participantes e uma recorrência da experiência vivida no museu na fala dos pacientes ao longo dos dias seguintes, além da promoção de interações, por vezes tão raras ao público idoso”.