Saúde

Dia da Gula propõe passe livre para esbórnia gastronômica, mas é preciso cautela

Comer demais eventualmente não é problemas, mas, se rotineiro, comportamento pode indicar transtorno alimentar

Por Alex Bessas
Publicado em 25 de janeiro de 2024 | 07:00
 
 
Compulsão por comida é um tipo de transtorno alimentar e exige tratamento multidisciplinar Foto: SementsovaLesia/iStockphoto

Um clássico da literatura mundial que também conquistou fãs quando adaptado para o cinema, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” não apenas conta a história de Charlie Bucket, um menino pobre que ganha um convite para visitar a misteriosa fábrica de doces do excêntrico Willy Wonka, como também trata de uma série de temas morais – e de forma, digamos, impiedosa. Ocorre que, na fábula do escritor britânico Roald Dahl, publicada originalmente em 1964, algumas das crianças contempladas com a chance de conhecer aquele lugar mágico vão sendo eliminadas à medida que desobedecem às regras da casa. 

No caso, o primeiro a ser punido é Augustus Gloop, que, ao ceder à gula, cai em um rio de chocolate, sendo sugado por uma máquina. Enquanto isso, Wonka – que já foi vivido no cinema por Gene Wilder, em 1971, Johnny Depp, em 2005, e Timothée Chalamet, em 2023 – observa a cena despreocupado, e seus ajudantes, os Oompa-Loompas, até se divertem, entoando uma canção que satiriza o destino de Gloop.

Fora da fábula, contudo, é difícil não se compadecer daquele pequeno glutão, que não resiste à tentação diante de uma guloseima. Afinal, que atire a primeira pedra aquele que nunca exagerou na comilança diante de um prato saboroso ou de uma sobremesa irresistível. A verdade é que, embora listada entre os sete pecados capitais – uma classificação cristã de condições humanas conhecidas, atualmente, como “vícios” –, a gula tem um quê de pop. Tanto que ela tem até uma data no calendário: o dia 26 de janeiro, que neste ano, oportunamente, cai nesta sexta-feira.

O Dia da Gula é encarado, por alguns, como uma espécie de passe livre para a esbórnia gastronômica. E a boa notícia é que cometer excessos uma vez ou outra e comer além do que a fome exige pode, sim, acontecer com qualquer pessoa sem gerar consequências graves ou relevantes. Porém, essa atitude precisa ser observada com cuidado, pois, quando recorrente, pode ser sinal de um transtorno alimentar, como a compulsão por comida, que traz diversos comprometimentos para a saúde. O alerta é da psicóloga Juliana Meneghelo, especialista em qualidade de vida, longevidade com qualidade e emagrecimento saudável.

“Segundo o Manual de Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais (DSM-IV-TR), a compulsão alimentar pode ser compreendida como transtorno quando ocorrem episódios frequentes, pelo menos duas vezes por semana, e quando esse comportamento se prolonga por um período específico, de pelo menos seis meses”, situa a especialista, acrescentando que, para ser caracterizado como transtorno da compulsão alimentar periódica, o comportamento deve estar acompanhado de outros, como perda de controle, culpa ou vergonha após comer, e não pode estar associado a comportamentos compensatórios para perder peso, como uso de diuréticos, laxantes ou até mesmo vômitos voluntários, o que configuraria um quadro de bulimia – que também é um tipo de transtorno alimentar.

Complicações

Além do sofrimento causado por uma relação disfuncional com a comida, Juliana Meneghelo alerta que os transtornos alimentares, incluindo a compulsão por comida, quando não tratados ou tratados tardiamente, podem acarretar doenças e comorbidades, como obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, cálculo renal, apneia do sono, diminuição da capacidade respiratória, gastrite e refluxo. 

Ela acrescenta que os pacientes com esse diagnóstico apresentam as maiores taxas de mortalidade entre os transtornos psiquiátricos. “Uma morte a cada 52 minutos é resultado direto de um transtorno alimentar. Além dessas estatísticas alarmantes, há uma forte conexão entre distúrbios alimentares e suicídio”, aponta, mencionando que, segundo a Associação de Anorexia Nervosa e Distúrbios Associados (Anad), 26% das pessoas nessa condição atentam contra a própria vida.

Compulsão alimentar

Se a gula foi retratada, por um viés moral, em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, a compulsão alimentar ganhou holofotes, sem ceder ao moralismo, em “A Baleia”, longa-metragem que rendeu uma estatueta do Oscar 2023, na categoria de Melhor Ator, para Brendan Fraser. Baseado em uma peça de teatro de Samuel D. Hunter, que assina o roteiro, o filme dirigido por Darren Aronofsky narra a tentativa de reaproximação entre o professor de inglês Charlie, de personalidade dócil, e sua filha Ellie, que, já adolescente, apresenta um comportamento hostil.

Um dos temas centrais na construção do personagem, que também lida com a depressão, a compulsão por comida é caracterizada, segundo Juliana Meneghelo, pelo consumo excessivo de alimentos em um curto período (cerca de duas horas), ainda que a pessoa não tenha fome e esteja saciada, acompanhado de um sentimento de perda de controle sobre o episódio compulsivo. 

“Diferente do que muitos pensam, a compulsão alimentar não é apenas falta de força de vontade, trata-se, na verdade, de um distúrbio do comportamento alimentar, que está associado ao sentimento de compensação e alívio momentâneo e que precisa de acompanhamento com o profissional adequado”, informa a psicóloga, complementando que, quando não tratada, a condição pode levar ao ganho de peso, baixa autoestima, além do profundo sentimento de culpa e tristeza, que podem levar a problemas mais graves, como a depressão.

Muito ajuda quem pouco atrapalha

Mais recentemente, a compulsão alimentar voltou a ser um tema capaz de atrair a atenção pública desde que Yasmin Brunet, participante do “Big Brother Brasil (BBB) 24”, revelou ter o diagnóstico. Ela, que chegou a ser criticada por outros brothers pela forma como se relaciona com a comida, disse que, fora da casa, o problema estava controlado, mas, no jogo, o comportamento acabou voltando. Além disso, diante dos palpites não solicitados que ouviu de outros competidores, alertou que os “puxões de orelha” em nada contribuem para o controle do transtorno.

E, de fato, mesmo que os comentários sobre como a pessoa se alimenta sejam bem-intencionados, essas intromissões e conselhos inoportunos tendem mais a atrapalhar do que ajudar. “É muito importante lembrar que a intenção, embora seja nobre, não substitui o comportamento em si e as consequências desse comportamento”, assevera a psicóloga Tatiana Freitas Wandekoken, que complementa dizendo não ser incomum que a percepção social seja um fator que impacte a manutenção de comportamentos não saudáveis. “O ambiente social onde a pessoa está inserida pode atuar como facilitador desse comportamento não saudável ou como suporte para uma relação mais saudável com o corpo. Via de regra, podemos adotar a máxima de não comentar sobre o corpo das pessoas, ponto”, estabelece.

Tratamento

Diante da gravidade das complicações associadas aos transtornos alimentares, Juliana Meneghelo destaca que esses quadros podem ser tratados. A psicóloga explica que, normalmente, o tratamento é multidisciplinar, com a participação de psiquiatras e nutricionistas, além de psicólogos, podendo, inclusive, ser indicado o uso de medicamentos para o controle de sintomas.

“A ansiedade é um dos fatores que apresentam relação direta com a compulsão alimentar, pois os estímulos ansiosos para a comida, aos poucos, tornam-se um hábito. Muitas vezes, o ato de comer compulsivamente resulta de quadros associados à fome emocional, que surge de repente, e a pessoa se vê dominada por ela”, detalha, sugerindo que o primeiro passo é aceitar ajuda.

“Pessoas com transtornos alimentares sentem vergonha de admitir que têm um problema com os hábitos de alimentação, acreditam que devem ser capazes de vencer o transtorno sozinhas, não o percebem como uma doença e podem até considerar seus hábitos úteis”, avalia, enfatizando que isso ocorre porque esses pacientes, geralmente, têm uma imagem distorcida do próprio corpo. “Tais percepções conduzem a pensamentos obsessivos, sempre muito difíceis de modificar”, diz. 

Ciente do problema, portanto, vale investigar a origem daquele comportamento disfuncional e, a partir daí, pouco a pouco, pode-se dar pequenos passos que vão levar à melhora do quadro.