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'Dia Roxo' visa aumentar conhecimento sobre epilepsia e reduzir preconceito

Instituído em 2008, no Canadá, data busca dar visibilidade e trazer esclarecimentos sobre a doença – que ainda é cercada de mitos

Por Da Redação
Publicado em 24 de março de 2019 | 03:00
 
 
Felipe em fotos com a mãe, Nivia, o pai e o irmão em viagens pelo mundo: uma das metas da família é que ele nunca deixe de fazer nada por conta da epilepsia Foto: Arquivo pessoal

Um dos prazeres e orgulhos da empresária mineira Adriana de Castro, 33, é ser, hoje, professora de ioga. O jovem paulista Felipe, 17, por sua vez, pôde conhecer, ao lado da família, lugares como Paris, Grécia, Chile, Orlando e Miami. Os dois, é verdade, compartilham com milhares de brasileiros sonhos parecidos – como o de se formar em algo que ama ou o de conhecer os quatro cantos do mundo. Mas, com uma fatia mais estreita da população, estimada entre 1% e 2%, eles guardam algo em comum: o diagnóstico de epilepsia.

Hoje, em todo o planeta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 50 milhões de pessoas apresentam quadro epilético. No Brasil, são aproximadamente 3 milhões com a síndrome. Embora não seja considerada uma doença rara e, como se vê, seja possível levar uma vida normal, plena e realizada, ainda há muitos estigmas acerca da doença que podem prejudicar essas pessoas – fazendo que sofram preconceito e constrangimento social e até que sejam preteridas no mercado de trabalho. Para boa parte dessa comunidade, a falta de conhecimento é, ainda hoje, grande vilã para as pessoas com epilepsia. Por essa razão, na próxima terça-feira, dia 26, é celebrado o Dia Roxo, que, há dez anos, busca dar visibilidade e trazer esclarecimentos sobre a doença.

“A primeira manifestação da doença aconteceu quando eu tinha 6 anos. Mas o diagnóstico foi de disritmia”, lembra Adriana. Assim, por anos, foi tratada de forma ineficaz. Sofreu apenas dois casos de convulsão, um na infância e outro na adolescência, mas era comum que sentisse náuseas e dores de cabeça. A paralisia simples (quando se fica inconsciente, com olhar fixo e corpo imóvel, durante algum tempo) e complexa (que envolve movimentos involuntários de membros do corpo ou falas desconexas) também eram episódios que lhe ocorriam. Só aos 23 anos, finalmente, ela foi diagnosticada corretamente. “Essa demora é algo que me surpreende e mostra como, mesmo na medicina, ainda há desconhecimento”, diz.

A observação é, por sinal, ratificada pela mãe de Felipe, Nivia Colin. Ela lembra que levava ao pediatra relatos sobre movimentos involuntários do garoto durante o sono e que, às vezes, ele ficava com a pálpebra caída. Apesar dos relatos, o diagnóstico só veio depois de uma convulsão, quando Felipe tinha 7 anos. “Quando descobrimos, houve uma desestabilização. Decisões que eram óbvias, como deixar que ele fosse sozinho para a escola, se tornaram difíceis”, reconhece a mãe.

Diante da nova realidade que se impunha, colocando a família ante o desconhecido, os pais buscaram se informar. E, à medida que melhor compreendiam aquele quadro, mais estimularam que o garoto “nunca deixasse de fazer qualquer coisa por conta da epilepsia”. Não foi um processo fácil: “Havia tanta falta de conhecimento, que a escola não sabia como agir – eles sofreram conosco”, lembra Nivia, que, junto a um neurologista e a uma psicopedagoga, buscou orientar o colégio. “Costumo dizer que somos uma equipe”, diz.

Com a experiência, Nivia criou, no Facebook, a página Mães da Epilepsia. Seguida por cerca de 116 mil usuários da rede social, a iniciativa converteu-se em uma rede apoio e informação. E é através dos relatos que recebe cotidianamente que Nivia crava: ainda há muito preconceito. “Há escolas que, ao saber que a criança tem epilepsia, pode ser que, simplesmente, digam que não há vaga”, comenta. “Se uma criança tem problema de visão, basta que o professor oriente a usar óculos. Se tem diabetes, basta tomar certos cuidados e vai ficar tudo bem. No caso da epilepsia, não deveria diferente”, compara ela. Essas portas que podem se fechar também no mercado de trabalho, como sustenta Adriana. “Ninguém diz que tem a doença na entrevista de emprego, por mais que já esteja controlada”, diz. 

“Há um preconceito na sociedade de uma forma geral, e isso acaba por acarretar dificuldades de inserção das pessoas com epilepsia na escola e no trabalho. Mesmo dentro da própria família, é comum superproteção e medo excessivo, limitando autonomia e individualidade do paciente”, avalia a médica neurofisiologista do Centro de Cirurgia de Epilepsia do Hospital das Clínicas da UFMG, Ana Paula Gonçalves. Pela perspectiva científica, a expectativa é positiva. “O progresso é contínuo, e cada vez mais pessoas se beneficiarão de tratamentos mais eficazes, que proporcionem melhor qualidade de vida e independência”, afirma.

Refratários. Adriana e Felipe estão entre os 30% de casos em que a epilepsia tem difícil controle com o tratamento medicamentoso. Por isso, passaram por longo período de acompanhamento médico, testando novos fármacos, até que as crises fossem controladas. Ainda criança, entre os 7 e os 10 anos, Felipe passou por 18 trocas de medicamentos. “Depois de tanto tentar, finalmente acertamos! Ele está há quatro anos e cinco meses sem crise”, celebra Nivia, que, aliás, se formou em neuropsicologia há um ano. No caso de Adriana, houve tentativa de resposta dos medicamentos entre os 23 e os 29 anos. Mas, como ela estava entre os 9% a 10% de pacientes que podem se beneficiar de procedimentos cirúrgicos, optou por esse tratamento. “Faz quatro anos que não tenho mais nenhuma crise”, diz ela, que ainda faz uso de medicamentos.

 

A professora de ioga Adriana sofreu com a epilepsia na infância e na adolescência, mas só foi diagnosticada quando adulta. Hoje, após uma cirurgia, não tem tido crises

Doença pode ser controlada através de tratamentos

Especialista pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN) e integrante da Associação dos Neurocirurgiões do Estado de São Paulo (Sonesp), o médico Luiz Daniel Cetl explica que a epilepsia é uma alteração na condução de impulsos nervosos. “Os neurônios se comunicam por impulsos elétricos, de forma organizada. Na epilepsia, esses impulsos se dão de forma desordenada e até maciça, podendo acontecer em parte do cérebro ou nele todo”, expõe, completando tratar-se de uma doença neurológica, não mental.

Após diagnóstico, parte-se para o tratamento através de drogas antiepiléticas. “Sabemos que 70% dos casos podem ser controlados através de medicamentos”, cita Cetl. Quando a resposta não é positiva, há possibilidade de procedimento cirúrgico – que pode ser ressectivo, quando a parte responsável pela desordem é retirada do cérebro, desconectivo, que desconecta um hemisfério cerebral, que está mais doente, do outro, e, ainda, de neuromodulação, quando um estimulador é implantado no nervo vago, na altura do pescoço, e lança impulsos elétricos que visam sincronizar as atividades do sistema nervoso central. Dos três, o procedimento que apresenta melhores resultados é o ressectivo.

Dieta cetogênica. “Se a medicação não funcionou e o paciente não tem indicação para realizar o procedimento cirúrgico, pode-se tentar a dieta cetogênica – que pode diminuir a quantidade de crises, mas, sozinha, não controla a epilepsia”, examina Cetl, inteirando que a dieta só é indicada para o tratamento de crianças. A nutricionista Renata Dessordi informa, munida de pesquisas recentes, que o número de crises chega a cair em 50%. Restritiva, ela cita que a dieta induz o corpo a um estado de cetose – quando o organismo obtém energia a partir da gordura. A profissional avalia, ainda, que é preciso monitoramento multidisciplinar do dietista.

Por fim, uma última possibilidade de tratamento é o uso do canabidiol – uma das 113 substâncias químicas canabinoides encontradas na Cannabis sativa. Cetl observa, todavia, que só existe uma medicação que se vale do elemento, com concentração de 99%, aprovada pelo FDI americano, e que a opção só é indicada em dois casos específicos de síndromes epiléticas, as duas para crianças, e que esta não é a primeira linha de tratamento. No Brasil e em outros lugares do mundo, há uso aprovado pela Anvisa de um óleo, produzido por laboratórios, que não garante níveis exatos de concentração. Esse extrato pode ser receitado por médicos, mas, no país, ainda não há regulamentação sobre o uso da substância.

Para Cetl e também para Ana Paula Gonçalves, médica do Hospital das Clínicas da UFMG, ainda há poucas conclusões científicas acerca dos benefícios e dos riscos associados ao tratamento que faz uso da substância.

Com histórico de estigma, é preciso desmistificar a doença

Primeiro relato. Ana Paula Gonçalves, médica neurofisiologista do Centro de Cirurgia de Epilepsia do Hospital das Clínicas da UFMG, explica que o primeiro manuscrito detalhado de um caso de epilepsia remonta de 2.000 anos a.c, em um livro-texto babilônico.

Origem da palavra. A palavra epilepsia tem origem grega e significa “ser tomado, ser possuído”. Ainda hoje, há religiosos que entendem crises epiléticas como manifestações de possessão espiritual.

Mitos. Trata-se de uma doença cercada de estigmas adquiridos ao longo de uma história de desconhecimento e preconceitos.

Caricatura do crime. Para se ter uma ideia, inspirada pela Escola Positiva, fundada pelo criminologista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), o pensamento neuropsiquiátrico brasileiro do final do século XIX tendia a ver no epilético uma “caricatura do crime”.

Machado de Assis. No livro “Epilepsia e Estigma” (2010, ed. Casa Leitura Médica), Elza Márcia Targas Yacubian, livre-docente em Neurologia da Universidade Federal de São Paulo, examina como a vida e obra de Machado de Assis (1839-1908) “é o retrato da sociedade de sua época e dos conceitos científicos de seu século e nelas é possível desvendar o enorme estigma relacionado à raça, à pobreza e à epilepsia”.

Desmistificar. A médica Ana Paula Gonçalves defende que, à luz de uma maior compreensão, é necessário falar mais sobre assunto e trazer a epilepsia para o lugar que ela realmente deve ocupar, de uma doença neurológica comum e tratável.