Sinal amarelo

Incels: homens frustrados que fomentam ódio em fóruns na internet

Celebração ao ataque de Suzano em chan na deep web e evidência de que assassinos o utilizavam acendem alerta para a sociedade

Por Da Redação
Publicado em 17 de março de 2019 | 03:00
 
 
Sexualmente frutrados, os chamados “incels” cultivam ódio visceral contra mulheres em fóruns online e anônimos na Dark Net Foto: Pixabay

Em 2013, Marcelo Valle Silveira Mello e Emerson Eduardo Rodrigues criaram o Dogolachan. Atualmente “escondida” na deep web, a plataforma, assim como outros fóruns do tipo chan, tem como regra o anonimato dos participantes e a autodestruição periódica dos posts, de modo que não mantém registros por muito tempo. Desde o momento de sua criação, esse espaço vem sendo usado por homens que têm raiva de muita gente – negros, gays, transexuais, judeus e, principalmente, mulheres – para compartilhar e reforçar a frustração e o ódio que sentem.

Poucas horas após o ataque dos ex-alunos que mataram pelo menos oito pessoas e depois se suicidaram em uma escola em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, foram encontrados indícios de que os assassinos frequentavam o fórum. A descoberta se deu por meio dos próprios usuários, que celebravam o ataque. Numa das postagens, um participante escreveu, junto com a foto de um dos assassinos: “descobriram o perfil do herói”. Na sequência das comemorações, outros membros deram conta de que os atiradores seriam frequentadores do grupo e que, inclusive, teriam informado a pretensão de realizar o ataque.

Essa sequência de fatos acende um alerta para o que acontece nesses espaços virtuais, desconhecidos por muita gente, e suas possíveis causas e consequências para a sociedade. Fóruns como esse estão cheios de indivíduos que se referem a mulheres como “depósitos de porra”, as “criaturas mais hipócritas e deploráveis do universo”, “vadias que só sabem dar para o pior tipo de lixo”. Há também referências frequentes à pedofilia e defesa do estupro de meninas adolescentes. 

Por outro lado, eles falam sobre sua solidão, insegurança e sobre a frustração por não conseguirem se relacionar. Mas em vez de se apoiarem, incitam o ódio uns nos outros. Esses homens são conhecidos como “incel”, contração da expressão em inglês “involuntary celibates”, (celibatários involuntários) e já foram associados a outros ataques nos Estados Unidos e no Canadá.

Os incels formam um dos grupos que integram uma onda de movimentos sobre masculinidade relacionados à alt-right (associação de indivíduos com visões de extrema direita e profunda desconfiança do establishment) e se caracterizam fundamentalmente por não conseguirem fazer sexo. O analista internacional e pesquisador em segurança, inteligência e estratégia na Universidade de Glasgow, na Escócia, Felipe Simoni explica que os fóruns como aquele em que foram encontrados possíveis registros dos assassinos de Suzano propiciam a maior parte dos encontros entre esses homens. “Graças ao anonimato e à dinamicidade desses espaços, o movimento atrai novos integrantes, desenvolve suas interações e promove seu discurso, tudo isso de forma orgânica”, diz.

São pessoas que atribuem às mudanças na sociedade, tais como as conquistas de direitos pelas mulheres, o fato de serem rejeitados. “Eles têm um sistema de crenças sobre o funcionamento da sociedade baseado em um padrão de beleza e nas relações sexuais e entendem que nunca vão se relacionar com ninguém por conta das estruturas sociais”, afirma Simoni.

Masculinidade. Manifestações como essa têm a ver com um movimento da cultura, como observa o psiquiatra e psicanalista Henri Kaufmanner. “A natureza nos fornece uma ideia de macho e fêmea, mas o avanço civilizatório confirma que o ser humano é marcado por uma existência simbólica, ou seja, não estamos só no registro biológico da vida”, explica.

Sob a perspectiva da psicanálise, a experiência de satisfação no humano é marcada pela ação da palavra no corpo e dissociada do registro da natureza. “Freud demonstra que a condição sexual nos seres humanos é definida por fatores mais complexos do que simplesmente ter uma coisa no meio das pernas ou não. E o mundo está nos mostrando isso”, acrescenta o psiquiatra. 

Por muito tempo, a sociedade se organizou em torno de mitos do que é o homem e o que é a mulher. Mas o avanço da ciência fez cairem esses mitos. “Para muitos homens, foi se tornando difícil sustentar o que é a masculinidade. E, à medida que o que é ser homem vai se esvaziando, eles recorrem a estruturas que reforçam essa crença original (de que o homem é superior à mulher). Por isso acontecem as ondas de estupro, os feminicídios e todas as formas de violência contra a mulher, inclusive as manifestas nesses fóruns. O que vemos no mundo hoje, em discursos como os desses homens, é uma tentativa de conter os avanços da mulher”, conclui.

Quando a masculinidade se torna tóxica

Tóxica. De acordo com a American Psychological Association (APA), a masculinidade, historicamente, tem sido definida, em geral, como um comportamento agressivo, predispostos ao risco e de restrição às emoções vulneráveis, como medo e tristeza. A APA orienta terapeutas a ajudar homens a compreender melhor o padrão de comportamento que estão reproduzindo.

Terrorismo. O documentário “Jihad, A Story of the Others” (2015) entrevistou combatentes do Estado Islâmico e demonstrou como o grupo se aproveita da crise do ideal de masculinidade para angariar seguidores. Um dos depoimentos, por exemplo, indica que jovens muçulmanos, frustrados sexualmente, buscam, na Guerra Santa, uma forma de provar o seu valor.

Desarmando. Para Henri Myrttinen, pesquisador do Instituto para a Transformação Social em Yogyakarta, na Indonésia, a masculinidade violenta envolve a supressão de masculinidades alternativas e concorrentes – não apenas em outros, como em si. 

Armas e gênero. Para Myrttinen, a exibição de uma arma em público é um modo de exibição e confirmação de masculinidade. Alegoria de suas análises foi a ação de um estudante, na noite da última quinta (14), que disparou com uma arma de fogo na porta de um colégio, em Nova Lima. Com o ato, o adolescente respondia a boatos sobre sua possível homossexualidade.

Entenda as terminologias relacionadas aos fóruns 

Chans. Abreviação de channel (canal, em inglês), são fóruns online organizados em tópicos de discussão, de temáticas variadas – jogos, músicas e séries podem ser os temas. 

Anon. É a abreviação para anônimo. Nos chans, qualquer usuário pode postar imagens e textos de forma anônima – o que torna alguns desses sites ambientes propícios para discursos de ódio e crimes.

Deep web. São sites e páginas (fóruns, blogs, lojas online) que não são encontrados através de buscadores e só podem ser acessados por um navegador específico – portanto, não estão na chamada “superfície da internet”.

Dark net. Muito parecida com a deep web, mas confere ainda mais anonimato ao usuário – já que é uma parte da internet distribuída apenas para esse fim. Por isso, é mais difícil derrubar essas páginas, mesmo que tenham conteúdo criminoso.

Tor Browser. É um navegador em código aberto que possibilita comunicação com a internet de maneira anônima, garantindo maior privacidade e segurança de dados ao usuário – seu funcionamento consiste no redirecionamento do tráfego de internet através de uma rede de servidores voluntários, distribuídos ao redor de todo o globo terrestre. O Tor consegue navegar pela deep web.

Falho. São pessoas consideradas inadequadas socialmente, por conta de déficit de habilidades de comunicação interpessoal e de sua pouca vida social.

Masculinistas. Espécie de ativistas de extrema direita que defendem que os homens estão sendo subjugados pelos movimentos de minorias e pelas mulheres e, comumente, se identificam com o neonazismo.

Incel. Flexão para a expressão inglesa “involuntary celibacy” (celibatário involuntário) que designa homens frustrados sexualmente. Em geral, são virgens e se consideram rejeitados por mulheres. A misoginia é prática comum do grupo. É uma ramificação dos masculinistas.

Lulz. A expressão tem como origem a sigla inglesa LOL “Laugh Out Loud” (rindo bem alto). Em geral, usada em contexto de humor sádico.

Troll. Designa aqueles que, através de comentários ou de pegadinhas, costumam provocar outros usuários de redes sociais. O troll costuma postar conteúdos repulsivos apenas para chocar sua audiência.

Violenta reação aos novos tempos

A relação dos incels com o ataque recente na cidade paulista de Suzano tem a ver com o reconhecimento de uma tendência mundial, como pontua o analista internacional e pesquisador em segurança, inteligência e estratégia, na Universidade de Glasgow, na Escócia, Felipe Simoni. “É algo que cada vez mais acontece, e é importante entendermos o que aconteceu não só como mais um massacre de armas no Brasil, mas também que tem havido terreno fértil pra esse tipo de movimento no país”, explica. 

Ele salienta que é preciso discutir quais as consequências sociais e políticas desse tipo de acontecimento. “É algo que está muito relacionado à saúde mental, esses homens em geral têm traços similares aos da paranoia. Temos condição, enquanto sociedade, de oferecer apoio psicológico para essas pessoas? Vamos conseguir reagir a isso? Temos espaço para discutir a masculinidade tóxica? São questionamentos que ficam pra gente”, diz, acrescentando que os ataques têm mais a ver com a discussão sobre o masculino do que sobre bullying – importante destacar: o comportamento não é a única razão do crime, que não deve ser simplificado.

São questões pertinentes, uma vez que as mudanças na sociedade não vão ser revertidas, ressalta o psiquiatra e psicanalista Henri Kaufmanner. “Acredito que nada possa conter os avanços já conquistados pelas mulheres. Não dá para simplesmente fechar uma porta e acreditar que tudo não existe. Já está evidente na sociedade”, diz.

A menos que essa situação nos leve à barbárie – o que não considera impossível –, Kaufmanner acredita que é preciso pensar no melhor jeito de avançar, dentro de uma lógica civilizatória, na direção de uma nova distribuição do que é masculino e do que é feminino – que não passa necessariamente por machos e fêmeas, nem pela questão biológica. “Passa, afinal, por outras vias de suportar a diferença como cada um se satisfaz no mundo”, defende.

Punir crimes ainda é um desafio

Um dos alvos preferenciais dos chamados masculinistas – homens misóginos e que, muitas vezes, se identificam com valores neonazistas – brasileiros é a argentina naturalizada brasileira Dolores Aronovich. Professora de letras estrangeiras da Universidade Federal do Ceará (UFC), Lola, como é conhecida, se dedica, desde 2008, a manter um blog feminista. É nele que ela expõe manifestações de ódio às mulheres, que são comuns em alguns chans. Por essa razão, é recorrente que receba ameaças de morte – contra ela, seus familiares e até seus alunos. A feminista já precisou registrar mais de dez boletins de ocorrência, que foram convertidos em um inquérito pelo Ministério Público. A história motivou a criação da Lei Lola, de 2017, que atribui à Polícia Federal a investigação de crimes cibernéticos de misoginia.

“Creio que seja impossível acabar com os chans, ainda mais na deep web”, avalia ela, emendando que, mesmo longe da superfície da internet, “grupos extremistas devem ser monitorados”. Acompanhando os passos desses vetores de ódio, Lola assegura que a maioria é formada por adultos, que não estudam, não trabalham e passam o dia em frente ao computador. Era o caso de Marcelo Valle Silveira Mello, 33, um dos perseguidores da blogueira e que foi o primeiro brasileiro a ser condenado por racismo na web. Fundador de um chan, ele havia sido preso em 2012, mas foi liberto. Em maio de 2018, voltou a ser preso e, em dezembro do mesmo ano, foi condenado a mais de 41 anos de prisão em regime fechado.

A prisão e condenação do notório troll, fruto da operação Bravata, da Polícia Federal, é um exemplo de como o autor de diversos crimes praticados na internet pode vir a responder criminalmente por seus atos. Todavia, com crescente registro de crimes cibernéticos, a impressão que se tem é que a internet permanece como uma “terra sem lei”. Para se ter uma ideia, a ONG SaferNet Brasil recebeu 133.732 queixas em 2018 – incluindo 27.716 casos de apologia e incitação a crimes contra a vida. Casos de violência contra mulheres e misoginia tiveram crescimento de 1.639,54% em relação ao ano anterior.

Para o professor de direito penal da UFMG Túlio Vianna, “é preciso ver se as polícias estão preparadas, se o Judiciário está adaptado a essa realidade”. “Me parece que esse tipo de crime surge em uma velocidade maior do que as autoridades conseguem acompanhar”, avalia ele, que foi conselheiro suplente do Comitê Gestor da Internet no Brasil até o ano de 2010.

Vianna defende que “a falta de treinamento é um problema maior do que a necessidade de mudanças ou criação de novas leis”. Afinal, se um grupo com quatro ou mais pessoas se reúne para a prática de qualquer tipo de crime, “temos aí a configuração do que entendemos como organização criminosa, mesmo que isso aconteça em fóruns na web”, exemplifica. 

Dessa mesma maneira, se um usuário de um chan estimula outra pessoa a praticar algum crime, ela pode responder a processo junto ao autor, como participante – se o incentivo for direcionado a um adolescente, há um agravante e, enquanto o executor vai responder pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o adulto que tenha agido para estimular que o crime fosse realizado vai responder criminalmente.

O maior problema, pondera Vianna, diz respeito à coleta de provas e identificação dos autores. “Só a captura da tela não tem valor probatório”, indica. A recomendação é que, diante de tópicos onde se percebe ação criminosa, a testemunha vá a um cartório de notas e faça uma ata notarial: “o tabelião vai acessar, ler o conteúdo e lavrar uma ata dizendo o que viu – e isso poderá ser usado em juízo”.

Mesmo assim, esbarra-se em outro problema: o anonimato. “Muitas dessas pessoas usam apelidos, eles não estão ali com nome e sobrenome”, examina Vianna. Por essa razão é fundamental que a polícia seja acionada, para que peça ao Judiciário a quebra de sigilo – só assim é possível rastrear quem está por trás daquele apelido. Há, claro, formas de dificultar esse rastreio, mas o professor acredita que, por conta da sensação de impunidade, muitos são os que não se preocupam em ocultar seus rastros.