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Maternidade x prioridades: a decisão de ser (ou não) mãe

Pressão social, mudanças e necessidade de abdicar de coisas são alguns dos motivos que levam muitas mulheres a não querer ter filhos

Qua, 23/11/22 - 08h39
A dificuldade de conciliar a carreira (que se traduz na fonte de renda) com as demandas inerentes à maternidade (atenção, cuidado, carinho) não raro leva algumas mulheres à exaustão | Foto: Pixabay

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“Ainda parece que é um absurdo se posicionar como uma mulher adulta que não tem vontade de ter filhos”, desabafa a advogada Aline Paiva, 26. Decidida a não optar pela maternidade, ela confessa que sente que a sociedade a olha como se fosse incompleta ou como se faltasse com alguma função social. O julgamento, segundo ela, costuma vir principalmente de mulheres de gerações mais velhas. “Minha mãe, por exemplo, não reage muito bem à ideia de que eu não desejo ser mãe como ela. Outras mulheres da geração dela frequentemente fazem pouco-caso da minha decisão, alegando que ‘sou muito nova’ para tomar uma decisão tão ‘drástica’, que meu ‘relógio biológico’ logo vai ‘apitar’ ou ainda desconsideram minha orientação sexual, afirmando que ‘o meu parceiro pode cobrar isso’ de mim”.  

Lésbica, a advogada também já ouviu opinião semelhante de uma ginecologista quando expôs o desejo de não querer ter filhos e preferir realizar uma laqueadura – procedimento cirúrgico de esterilização para mulheres. “Acho que esse foi o momento mais constrangedor, porque ela riu de mim por eu estar sendo ‘radical’ e disse que eu deveria pensar direito e precisaria levar em conta a opinião do meu companheiro”. Além da própria sexualidade ignorada, o episódio, ocorrido há cerca de dois anos, também fez com que ela se questionasse sobre os motivos que fazem com que uma decisão tão importante sobre o próprio corpo precise ser validada por outras pessoas.  

Embora tenha que vivenciar situações de julgamento, Aline não está sozinha em sua decisão. Conforme uma pesquisa desenvolvida pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (Tanco), 37% das mulheres brasileiras em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não pensam em ter filhos.  

Essa definição já tem desdobramentos, principalmente na queda do número de nascimentos. Em 2021, o Brasil registrou seu menor número de nascidos desde 2002, quando o índice começou a ser contabilizado. No ano passado, foram 2.551.942 recém-nascidos. O indicador também marca a primeira vez que o índice no país fica abaixo dos 2,6 milhões de nascimentos. Os dados são do 3ª Relatório Anual de Cartórios.  

Mas, afinal, por que as mulheres não têm tido o desejo de serem mães? 

No caso da advogada Aline, são vários os fatores que corroboram a decisão. Alguns deles vão de encontro à crença de que a mulher se completa com a maternidade. “Consigo elencar outras situações que me deixariam mais realizada comigo mesma, como poder conhecer outros países, me aperfeiçoar e crescer na minha carreira, poder investir em projetos que me permitam ter uma boa situação financeira para mim mesma e poder oferecer a mesma segurança para os meus pais terem uma velhice confortável”, enumera.  

Aline ainda leva em conta o contexto econômico atual para optar pela não maternidade. “Realmente prefiro investir em mim mesma e no meu bem-estar. Me sustentar sozinha, o que nem sempre consigo sem ajuda, já é um malabarismo por si só. Por que eu faria alguém dependente de mim sofrer por essa mesma dificuldade? Não acho que seja justo”, reflete.  

A antropóloga Thaís Teles Rocha, que atua também como doula e é pesquisadora do Grupo de Estudos em Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesex/UFMG), conta que tem observado que o número de mulheres que têm desistido da maternidade aumentou, e não pelo desejo de não serem mães, mas pelo peso de um sistema que vê as crianças como uma responsabilidade puramente feminina. Nesse sentido, ela ressalta o próprio cenário brasileiro, que, conforme dados do IBGE, é constituído majoritariamente por famílias chefiadas por mulheres – 81,6% dos lares no país. “A múltipla jornada feminina ainda é uma realidade. A família tradicional brasileira ainda é uma mãe solo se virando com seus filhos em trabalhos precarizados”, afirma.  

Com as atividades e jornadas cada vez mais exaustivas, a maternidade impõe uma série de mudanças na vida da mulher, e elas também são levadas em conta por aquelas que decidem não se tornar mães. “A maternidade é muito mais complexa do que a gente pode imaginar, porque, quando uma mulher engravida, ela não sabe o que vai sentir até viver esse momento. É algo que muda a realidade completamente”, pontua a psicóloga puerperal, perinatal e familiar Daniela Bittar. “Seria uma grande mentira se eu dissesse que ela não afeta a vida social e profissional. Afeta também a vida do casal e todas as prioridades”. 

Na tentativa de equilibrar tarefas, afazeres e sua própria existência, muitas mães precisam abdicar de determinadas partes da vida. “Os filhos vão ficar na frente da profissão. Muitas vezes a mulher terá que sair da vida social em prol dessa vida com filhos, porque ela está montando a estrutura cerebral das crianças por meio da rotina, da afetividade. Quando o filho ainda não sabe quem é no mundo, ele vai ser ver através do rosto da mãe, então tudo vai ser afetado”, sublinha Daniela.  

A pesquisadora Thaís reforça o coro, ressaltando que nessa equação o cenário acaba sendo desfavorável às mulheres. “Atualmente, a mãe concatena funções dentro e fora de casa, em um contexto de abdicação. Abdica-se da carreira em nome dos filhos ou dos filhos em nome da carreira. Nessa equação, também se perdem oportunidades de escolarização, educação superior, saúde, lazer e descanso”, afirma.

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