Peneira social

Pandemia coloca amizades em xeque

Posturas diante de protocolos sanitários e posições políticas fizeram com que muita gente se afastasse ou rompesse laços afetivos

Por Da Redação
Publicado em 13 de setembro de 2021 | 04:51
 
 
Pandemia coloca amizades em xeque Foto: Dreamstime/Divulgação

A temperatura dos debates políticos já estava alta pelo menos desde a corrida presidencial de 2014, quando, em meio a embates acalorados e até mesmo grosseiros, começou a surgir aquela figura apaziguadora com uma mensagem pronta: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse eleição”. Enquanto o verso, que brinca com a letra da música “Pais e Filhos”, da banda Legião Urbana, continuou sendo repetido nos anos seguintes, o país seguiu em crescente polarização. Um fenômeno que afetou profundamente as relações familiares e de amizade e, em alguns casos, foi o estopim para o fim de namoros e casamentos. 
 
 
No cotidiano da cozinheira Ana Carol Francisco, os laços que já estavam ameaçados foram rompidos de vez em março do ano passado, quando a pandemia da Covid-19 chegou por aqui. “Foi quando o caldo entornou de vez e desfiz várias amizades”, admite, explicando que, como muita gente, ela já vinha sendo mais criteriosa em relação a com quem se relaciona. 
 
“A discordância é parte de qualquer tipo de interação. Porém, há pautas que considero inegociáveis. E o respeito pela vida é uma delas. Se a pessoa não segue protocolo, eu simplesmente não quero essa pessoa perto de mim”, garante, salientando que evitou julgar o comportamento das pessoas e criticá-las, apenas optou por se afastar. Para Ana Carol, a questão nunca foi se fechar a quem pensa diferente. “Não é que eu só vá conversar com quem concorda comigo. Não é disso que se trata. Mas evidentemente eu, como mulher, não sou obrigada a tolerar a amizade de alguém que acha que as mulheres são inferiores”, pondera. 
 
Diagnosticada com quadro depressivo, ela relata que a pandemia funcionou como uma peneira. “Foi quando eu descobri com quem realmente posso contar”, diz. “Tive diversas crises, e poucos estiveram comigo e me ajudaram nesses momentos. Não que esses amigos tivessem que estar à minha disposição, mas eu esperava que, pelo menos, eles exercessem a escuta… Com isso, notei que há muita gente egoísta, com quem eu conversava, mas sem ter uma troca autêntica, porque, no fim das contas, elas queriam falar somente de si mesmas”, reforça. 
 
 
O jornalista e professor universitário Reynaldo Maximiano é outro que, no último um ano e sete meses, viu a lista de amigos bloqueados nas redes sociais dele aumentar. “Com algumas pessoas, eu rompi relações porque entendi que houve uma quebra de confiança”, estabelece. Ao mesmo tempo, ele pondera que há uma linha tênue entre o gesto de escolher com quem vamos nos relacionar e o gesto de exercer arbítrio sobre a conduta do outro. “Existe um contexto de vigilância que é real e que pode nos levar a delírios persecutórios”, examina. Por isso, Maximiano sustenta que devemos nos policiar quanto ao desejo de julgar o outro. Afinal, a estratégia da personificação da culpa nunca se mostrou eficaz em termos de saúde pública. “Uma coisa é eu decidir me afastar de uma pessoa porque as atitudes dela me deixam inseguro, outra é estigmatizá-la e vê-la como uma ameaça”, elabora. 
 
 
Fenômeno social 
“A pandemia nos levou a ter que usar máscaras, em um sentido físico. Simultaneamente, em um sentido metafórico, essa crise fez que máscaras caíssem”, reflete o escritor e pesquisador Alexandre Gossn, que reconhece ter se decepcionado com a atitude de algumas pessoas nesse período e, por isso, optado por se afastar.  
 
Doutorando em estudos contemporâneos pelo Instituto de Investigações Interdisciplinares da Universidade de Coimbra, em Portugal, Gossn acredita que esse movimento de isolamento é natural, que decorre de um nível de exigência ética maior, o que ele julga ser bom, ou de uma estratificação social baseada na identificação, que ele vê como algo negativo. “Vivemos em uma sociedade egocêntrica, em que a empatia é direcionada apenas às pessoas que se parecem comigo. Mas esta é uma lógica que já não serve para um mundo globalizado”, pontua.  
 
Ele sustenta que a recusa de alguns em pensar no bem comum é sintoma e parte de um intrincado fenômeno sociocultural. “Estamos falando de um tipo de egoísmo pautado por um aspecto antissocial em que há uma supervalorização do indivíduo em detrimento do coletivo”, examina. 
 
“Observando por um prisma histórico, me parece que essas atitudes estão relacionadas a uma evolução do pensamento humano, mas uma evolução que não se completou. De maneira resumida, podemos dizer que viemos de uma sociedade medieval, em que o indivíduo comum não tinha seu valor reconhecido, para o momento contemporâneo, em que passou a haver um culto ao indivíduo”, analisa o autor do livro “Chapados de Cloroquina: A Morte da Empatia”, sétimo no ranking de mais vendidos da Livraria Martins Fontes na categoria de política. 
 
 
“Este um fenômeno sobre o qual estamos falando pode ser percebido por vários vieses, inclusive pelo cultural. Olhando para a história da arte, por exemplo, vamos perceber que, até o Iluminismo (no século XVIII), poucas pessoas eram representadas em retratos. Isto é, tinham o direito de reclamar para si uma identidade que os distinguisse dos outros. Depois, as pessoas começaram a fazer retratos de si. Hoje, vivemos a sociedade da selfie. Todos querem se afirmar. O que seria bom, se não fosse a exacerbação do individual, que leva a uma lógica de pensamento em que só o eu importa e que só o próprio prazer é valorizado. Daí, se acho que não corro o risco, então eu vou à festa clandestina, não vou usar máscara e não vou me vacinar. Quanto ao outro, ele que se dane”, complementa Gossn.