Pensamento contemporâneo

Prosa e filosofia com Domenico e Giannetti

Em Tiradentes, durante o Fórum do Amanhã, os pensadores Domenico de Masi e Eduardo Giannetti debateram sobre os rumos do país e do mundo

Por Da Redação
Publicado em 04 de dezembro de 2016 | 03:00
 
 
Diante da muralha da serra de São José, Eduardo Giannetti empresta seu chapéu a Domenico de Masi Foto: Mariela Guimarães

Passava um pouco do meio-dia do último sábado de novembro, sob um sol inclemente cercado por algumas nuvens ameaçadoras – a chuva só caiu no fim da tarde –, quando, a pedido da reportagem de O TEMPO, encontraram-se no terraço da pousada Brisa da Serra, na histórica Tiradentes, dois expoentes do pensamento contemporâneo mundial: o sociólogo italiano Domenico de Masi, mais conhecido aqui por sua obra “Ócio Criativo”, e o também sociólogo e doutor em economia Eduardo Giannetti, autor do monumental “Trópicos Utópicos”.

Principais convidados do Fórum do Amanhã, evento realizado na cidade mineira, Giannetti e Domenico aceitaram a proposta de se entrevistarem em um bate-papo de 50 minutos, intermediado pela reportagem. Dividida em duas etapas – de novo por causa dele, o tempo–, a entrevista se deu nos primeiros 15 minutos diante da inspiradora serra de São José. Nos outros 35 minutos, um teto recoberto de sempre-vivas secas, no interior da pousada, nos abrigou dos malabarismos do clima local.

Em meio a copos de estanho para água fresca e um café protegido por uma caneca esmaltada, oferecidos por um amável atendente, um bem-humorado e carismático Domenico deixou-se revelar na curiosidade de todo estrangeiro em busca do entendimento das várias facetas do ambiente político e econômico do Brasil. “Estamos em pleno século XXI com metade dos domicílios brasileiros sem coleta de esgoto”, informou o brasileiro para espanto do colega italiano.

Giannetti, 59, um mineiro apaixonado pela aura de Tiradentes, onde tem um quarto cativo no Solar da Ponte, usado como abrigo para escrever seus últimos quatro livros, manifestou desejo de entender o fascínio do pensador italiano pelo maior país da América Latina. “O que me encanta é a diferença, e o que me encanta também é a semelhança”, respondeu um Domenico dualista e provocador, protegido do sol forte por um simpático chapéu de palha.

Numa breve ausência de Giannetti, assim como o colega muito solicitado para dar atenção aos fãs como também para dar entrevistas, Domenico explicou a representação da morte de Fidel Castro para o comunismo e falou sobre o efeito Trump na América. “É um neoliberalismo exacerbado”, disse o sociólogo sobre o magnata.

Com a reaproximação do brasileiro, o italiano disparou nos questionamentos sobre pobres e ricos, luta de classes, o papel de Lula. Na tentativa de conseguir uma brecha para tentar explicar os meandros da desigualdade social no Brasil, Giannetti deu um puxão de orelha: “Domenico, agora o economista vai falar um pouco”.

Simples, e sem medo de parecer um aprendiz, com um largo sorriso, o italiano me sugeriu no final da entrevista: “Você pode colocar no título: Domenico entrevistando Giannetti”, finalizou, com um entusiasmo de menino aos 78 anos.


Minientrevista

Domenico de Masi e Eduardo Giannetti

Giannetti (G): Por que você se encantou pelo Brasil? Domenico (D):

O que me encanta é a diferença, e o que me encanta também é a semelhança. Mas (o Brasil) tem grande diferença com a Itália e com a Europa, e tem grande semelhança com a Itália e com a Europa. Eu começo com a semelhança. Eu sou do Sul da Itália, de Nápoles, que você conhece. O Sul da Itália é muito similar a alguns aspectos do Brasil. Por exemplo, a vida em Salvador é muito igual à vida no Sul da Itália. Há certa solidariedade. A presença do proletariado no centro da cidade, a produção teatral e musical e a divisão de classes, isso se vê nos dois lugares. No Brasil tem uma frase: que o baiano, quando vem ao mundo, não nasce, debuta. Isso também se aplica a Nápoles.

G: Você acha que Nápoles e Salvador têm parentesco? D:

Compreensivamente, tem. Eu creio que a Itália, entre todos os países da Europa, é a mais similar ao Brasil em vários aspectos: a importância que tem a cultura, a indústria um pouco menos, mas a Itália é o país mais similar ao Brasil entre todos os da Europa. Atualmente, aquilo que é importante no mundo todo – e pode parecer banal o que eu vou dizer– é o nível de alegria. Hoje, na Itália, quando se acolhem os imigrantes, nós vivemos um grande momento, um momento terrível. Cada dia chegam à Itália 400 ou 500 imigrantes e, entre esses, 300 morrem. Se eles partem em dois barcos, um barco chega, e o outro naufraga. E, quando chegam, metade deles está morta. É uma tragédia enorme. É uma morte atroz. Eu creio que, se isso acontecesse no Brasil, o povo ia se mobilizar, mas na Itália o povo só se mobiliza no Sul, na parte pobre, onde isso acontece. A parte rica não se mobiliza por nada. Os imigrantes chegam à ilha mais pobre da Itália, que se chama Lampedusa. À região mais rica da Itália, que é o Vale d’Aosta, no Norte, não chega nem mesmo um imigrante, e se chegar um, fica, porque mais de um, eles não aceitam lá. E isso, no Brasil, não acontece, porque o povo todo se mobiliza. Essa é uma grande diferença com o Brasil. A outra diferença profunda é que a Itália já fez uma centena de guerras. Nós temos um resquício de guerra em relação ao estrangeiro. A Europa fez guerra por 2.000 anos. E no Brasil, em 500 anos, fez uma guerra só. Nós fizemos centenas de guerras, a guerra napoleônica, na qual se perderam muitos jovens. E eu não vejo, nos jornais do Brasil, uma rivalidade grande entre o Brasil e seus países vizinhos. O italiano, quando chega ao Brasil, rapidamente encontra um amor, e eu encontrei amigos, o que é muito importante.

D: Eu sempre pergunto: nesses últimos anos, não se modificou a diferença de classes no Brasil? E como vai ficar o futuro? G:

É uma pergunta para dois séculos, um vasto período. Essa resposta começa pela demografia do Brasil, que triplicou a população em 45 anos. Éramos pouco mais de 50 milhões no início da década de 50 e em 1994 ultrapassamos a marca de 150 milhões de habitantes. Junto com isso veio o deslocamento em grande escala da população rural para os centros urbanos. No início do século XX tínhamos de 20% a 30% da população nas cidades e de 70% a 80% no meio rural. Hoje é o contrário. Nesse mesmo período em que a população explodiu, houve uma urbanização descontrolada, numa escala monumental. A combinação dessas duas coisas gerou um gravíssimo problema social brasileiro, porque não tivemos condições de mobilizar recursos para atender as necessidades de vida, saúde pública, educação fundamental, saneamento, transporte coletivo, também por conta de prioridades erradas de políticas públicas. Então, isso gerou um aprofundamento da desigualdade em grande escala na sociedade brasileira. Desigualdade que se manifesta no mundo urbano brasileiro. Estamos em pleno século XXI com metade dos domicílios brasileiros sem coleta de esgoto. (Isso causa espanto a Domenico.) O que dá uma esperança é que completamos esse movimento de urbanização e crescimento demográfico. Nós podemos agora, se tivermos prioridades corretas, começar a reduzir esse fosso social e econômico que se abriu e que é inaceitável na sociedade brasileira. Você fez uma comparação com a Europa que é muito interessante. O continente europeu demorou 60 anos para que as mulheres passassem de três para dois filhos, em média, durante seu ciclo reprodutivo. No Brasil, demorou 19 anos, houve uma queda vertiginosa da fecundidade.

D: E não há imigração neste momento? G: Não, o Brasil tem recebido muito pouco. Eu sou a favor de abrir mais. Mas o problema que vamos enfrentar daqui para frente é um envelhecimento muito rápido da população. Hoje, no Brasil, 12% da população tem mais de 60 anos. (Na Itália, são 32%, diz Domenico.) Em 2050, 30% da população estará acima de 60 anos, vai ser muito rápido. O Brasil avançou, se modernizou, se urbanizou mal, criou uma base de atividade econômica razoavelmente sofisticada, mas deixamos muito para trás o atendimento às necessidades básicas de vida moderna no campo da saúde, da educação, do saneamento, da segurança. O desafio agora cidadania do que uma voracidade de crescimento da renda. Menor desigualdade e mais atenção à formação de capital humano.

O TEMPO (OT): Para você, o que significa a morte de Fidel Castro no cenário mundial? Domenico:

É o fim de um último belo experimento comunista, apesar de ter sido um experimento errado, que foi feito a poucos quilômetros da neve (referindo-se aos EUA), com uma coragem extraordinária. Fidel conduziu o comunismo com muita moderação e nem sempre dentro daquilo que condizia com o paradigma comunista.

OT: Sem Fidel, é o fim do comunismo no mundo? D:

Não, eu creio que não é o fim do comunismo porque o capitalismo precisou de 500 anos para ser consolidado. O capitalismo começou em 1500 na Itália com os grandes banqueiros fiorentinos. O capitalismo teve altos e baixos, assim como o comunismo teve altos e baixos.

OT: Então, o comunismo não morre? D:

O comunismo não morre. Algumas ideias do comunismo morreram, e algumas ideias do capitalismo morreram. Algumas ideias do capitalismo ficaram, e algumas ideias do comunismo ficaram. A ideia da solidariedade e a ideia de distância entre o rico e o pobre e da felicidade coletiva ao invés da felicidade individual são todas as ideias que ficaram. Dizia Marx: eu não afirmo que todo jovem é um Mozart, mas, se um jovem tem um Mozart, ele tem o direito de se exprimir. Ele (Marx) não quer que um aristocrata vire um proletário, e sim que um proletário vire um aristocrata. Não tanto do ponto de vista da cultura, mas da qualidade de vida; eu creio que esses princípios não morrerão nunca, são eternos.

OT: Qual é o futuro do mundo com Trump na Presidência dos EUA? D:

É um neoliberalismo exacerbado. Trump pegou todos os defeitos do neoliberalismo sem saber o preço que ele vai pagar. No governo de Trump as rendas serão com menos impostos. Isso significa o aumento da pobreza. Ele tem todos os defeitos e nenhuma qualidade do neoliberalismo.

OT: Podemos ter mais guerras nas mãos de Trump? D:

Eu espero que não. Não é seguro que ele não vá mexer na bomba atômica. A América é uma sociedade madura. Não há só o Trump, tem militar, tem igreja, tem universidade, e a América se concentrará na renda interna.

OT: A pobreza pode diminuir no mundo? D:

Pobreza é a palavra de sempre. A pobreza aumenta no mundo. Nem nós estamos seguros se vamos comer. Há milhares de pessoas morrendo de fome. O único amigo com quem eu me encontrava todas as vezes no Brasil era Oscar Niemeyer, e conversávamos sobre a pobreza. Mas no Brasil isso é uma coisa diferente. Como poucos ricos conseguem evitar a revolução dos pobres? E isso eu pergunto ao Giannetti.

D: Por que não há uma revolução entre o pobre e o rico? G:

Você tem absoluta razão do escândalo que é uma sociedade tolerar um nível de desigualdade abissal como existe ainda hoje no Brasil. Há muito de diferença, há muito de resignação.

D: Ah, a Igreja não olha isso? G:

Mas, Domenico, agora o economista vai falar um pouco. O Estado brasileiro tem uma carga tributária altíssima, de 34% do PIB, mais de um terço da renda nacional. O Estado brasileiro gasta 10% do PIB a mais do que ele arrecada, é o déficit nominal. Quarenta e quatro por cento da renda nacional brasileira transita pelo setor público. A presença do Estado é quase metade da economia. O Bolsa Família, o principal programa de transferência de renda deste país, é 0,5% do PIB, é a migalha que cai da mesa. O Estado brasileiro é um enorme concentrador de renda.

D: É ineficiente? G:

Ele (Estado) paga previdência para o setor público exorbitantemente elevada. Os 4 milhões de inativos e pensionistas do setor público têm um déficit de previdência maior do que o gasto do Estado brasileiro com 37 milhões de crianças que frequentam escola pública. No Orçamento brasileiro de educação, o Estado gasta 25% no ensino superior. Quem frequenta o ensino superior público são os ricos. Um quarto do Orçamento do Estado brasileiro em educação é capturado pelos ricos. Nós temos 5.570 Câmaras Municipais. Aqui (em Tiradentes) tem uma Câmara com nove ou 11 vereadores. Não tem saneamento básico e gasta todo ano uma máquina cara no Legislativo municipal.

D: Mas isso é paradoxal, não é possível que não haja uma reação?

Porque os grupos que se beneficiam disso são muito organizados e estão representados no Congresso. O corporativismo é muito forte.

D: E por que Lula, que era socialista não resolveu isso? G:

Primeiro, ele representa grupos de trabalhadores organizados na economia formal, e, segundo, o governo dele começou muito bem, o primeiro mandato dele foi muito bom, mas, com a crise do mensalão (o escândalo da compra de parlamentares), Lula teve que se aliar, para sobreviver politicamente, ao que há de mais retrógrado na política brasileira. Ele se aliou a Renan, Antônio Carlos Magalhães e Collor para sobreviver politicamente. Teve que entregar uma parte do governo dele para o que há de mais retrógrado no país. O PMDB de Temer foi parte dessa aliança. Quem inventou esse PMDB do Temer foram Lula e Dilma. Tanto que eles o chamaram para ser vice-presidente. Não existe Temer sem Dilma. O mais belo momento da democracia brasileira foi a alternância de poder na passagem de Fernando Henrique Cardoso para Lula.

D: Neste momento qual é o papel dos militares no Brasil? G:

Estão completamente fora. O equivalente à queda de Jango foi o impeachment de Dilma. O país chegou a uma tal desorganização econômica que precisou mudar. A Dilma não teria caído se o país estivesse economicamente sólido, robusto.