“Nunca foi fácil passar da entrega do currículo. Muita gente entrega currículo, chega na entrevista e não é aprovado. Eu entregava currículo e não era nem cogitada para a entrevista por ser uma pessoa trans.” A realidade vivida pela psicóloga Patrícia Augusto, 39, em um passado recente, escancara um problema social e econômico do Brasil: a transfobia no mercado de trabalho.

A contratação de pessoas transexuais ainda é envolta em estigmas, preconceitos e barreiras que dificultam o acesso destes profissionais aos empregos formais. Discriminação que leva quase 90% da população trans brasileira a recorrer à prostituição como principal fonte de renda e única possibilidade de subsistência, segundo dados de 2021 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra Brasil).

Neste 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, O TEMPO traz histórias de pessoas trans e relatos de especialistas no tema com o intuito de refletir e jogar luz sobre essa realidade excludente no mercado de trabalho. Chegar até a faculdade, por exemplo, e se formar, é uma estatística rara para a população trans e de travestis. Isso porque o preconceito - que têm início geralmente na infância - barra quase todas as possibilidades de desenvolvimento de pessoas trans no âmbito da educação formal.  

Veja: profissionais trans relembram os desafios enfrentados no mercado de trabalho

Ontem, foi realizada em Brasília, a primeira Marsha Trans Brasil, organizada pela Antra Brasil e com a participação de mais de 40 instituições apoiadoras. “O evento teve o cunho político de reivindicar ao governo propostas que a gente precisa discutir, estabelecer uma mesa de diálogo com o movimento trans e as políticas que devemos trabalhar todo o ano de 2024, além de celebrar os 20 anos do Dia da Visibilidade”, comenta Keila Simpson, presidenta da Antra Brasil.

Não há dados de órgãos oficiais, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobre essa população no Brasil. “Não temos dados de pessoas trans e travestis. A Antra até tentou judicialmente fazer com que o IBGE colocasse algumas questões sobre isso no Censo, mas não tivemos sucesso. A Pnad deve trazer alguma coisa nesse sentido”, lamenta Keila.

Procurado por O TEMPO e questionado sobre a ausência de questões de orientação e de identidade sexual no Censo 2022, o instituto informou por meio de nota que “trata-se de uma informação muito íntima para ser captada junto a terceiros. Assim, essa questão nunca fez parte dos Censos do IBGE”. No entanto, disse estar atento à pauta - “que no Censo de 2010, já trazia a informação sobre cônjuges do mesmo sexo e que desde 2013, as Estatísticas do Registro Civil elaboradas pelo IBGE trazem informações sobre casais do mesmo sexo”. Em 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS/IBGE) incluiu no seu questionário perguntas sobre a orientação sexual dos entrevistados e os resultados foram divulgados em 2022. À época, 2,9 milhões de pessoas se auto identificaram como lésbicas, gays e bissexuais.

Grande parte dos dados disponíveis no país são coletados por organizações não governamentais de apoio e acolhimento a pessoas trans e travestis ou estão pulverizados em estados e municípios que adotam alguma política pública para essa parcela da população.

Invisibilidades

Assim como a população trans e de travestis continua estatisticamente invisibilizada na sociedade brasileira, as barreiras que as impedem de traçar suas trajetórias de vida com mais dignidade também. Patrícia Augusto, que hoje é analista de Equidade, Diversidade e Inclusão da siderúrgica de aço inoxidável Aperam South America, galgou muitos degraus para alcançar o diploma de psicóloga e o cargo que ocupa hoje. Só ela sabe das agruras e preconceitos que viveu.

“Eu ia entregar currículo e as reações dos profissionais de RH, das pessoas que recebiam os currículos, eram as mesmas. Alguns nem pegavam o papel, mesmo com uma placa na porta falando que tinha vaga. Logo eles tratavam de dizer que estava ocupada. Ali eu entendia do que se tratava. Um dia, ouvi dizer que no telemarketing todas as pessoas eram contratadas, porque lá não discriminava ninguém. Claro, ninguém era visto, nossos rostos não eram vistos. E eu fui: esse foi meu primeiro emprego”, recorda-se.