Perigosa retórica

Discurso agressivo de um líder pode acirrar violência na população

Especialistas veem relação entre retórica xenófoba de Trump e episódio de terrorismo doméstico; Republicano muda tom após ataques

Por Alex Bessas
Publicado em 06 de agosto de 2019 | 06:00
 
 
El Paso. Cruzes com nomes dos mortos foram colocadas próximas ao centro de compras atacado MARK RALSTON/AFP

Pela primeira vez, o presidente americano Donald Trump relacionou a supremacia branca os ataques a tiros que mataram ao menos 31 pessoas no último fim de semana, nos EUA. Ontem, em pronunciamento na Casa Branca, o republicano disse não haver espaço para ódio, intolerância e racismo no país. Ele atribuiu a responsabilidade pelos crimes a uma suposta “doença mental” dos atiradores e ao que chamou de “cultura de violência” perpetuada por “jogos de videogame”. 

As declarações de ontem mostram uma mudança de discurso de Trump. Recentemente, por exemplo, referindo-se a quatro deputadas de oposição, três delas americanas de nascimento e a quarta naturalizada, Trump sugeriu que deveriam voltar para os seus países “corruptos e falidos” – e por isso recebeu uma rara moção da Casa dos Representantes, condenando seus “tuítes racistas”.

A vicissitude ocorre depois de vir à tona o manifesto anti-imigração publicado por um dos atiradores em um fórum online. Além disso, o atentado está sendo tratado pelas autoridades como “terrorismo doméstico”. 

Para os democratas, portanto, o governante é corresponsável pelos ataques, pois legitimaria a violência contra minorias cotidianamente. “Tivemos um aumento nos crimes de ódio em cada um dos últimos três anos durante o governo de um presidente que chamou os mexicanos de estupradores e criminosos”, afirmou Beto O’Rourke, pré-candidato à presidência pelo Partido Democrata, em entrevista a CNN. A opinião é compartilhada por correligionários, como os também pré-candidatos Cory Booker e Pete Buttigieg.

Especialistas ouvidos por O Tempo, porém, ponderam que assassinatos em massa são fenômenos complexos e multicausais, e não podem ser compreendidas através de explicações simplistas. 

“É difícil estabelecer essa conexão tão diretamente”, examina Felipe Nunes, professor de Ciência Política na UFMG. Ainda assim, o estudioso aponta que é possível perceber a influência de um certo humor sociocultural, uma espécie de espírito do tempo que, em algum nível, legitimaria a violência. “Pessoas que idolatram lideranças políticas podem cometer exageros por se sentirem referendadas pela atitude desse líder”, adiciona.

Também cuidadoso em não indicar relação causal entre dois acontecimentos, o cientista político Fábio Wanderley Reis, por sua vez, não tem dúvida de que uma retórica radicalizada, que visa manter bases eleitorais fiéis, tende a gerar uma “influência muito negativa”. Além disso, há “um substrato da população que é mais sensível a esses discursos, pois eles convergem com seus preconceitos e soam como resposta às suas frustrações”, aponta.

Na avaliação de Camilo Aggio, professor de Comunicação Social na UFMG, não se deve ignorar “a força simbólica que determinados cargos exercem sobre a população”. “Se a referência máxima de um presidente diz que latinos são estupradores, que vão roubar os empregos dos americanos, ele está alimentando ainda mais a mentalidade que está por trás desses ataques”, indica.

Um agravante é o "fácil acesso a armas de alto calibre, que podem ser usadas para destruir o 'inimigo'", avalia Aggio. Vale dizer, Trump tem sido criticado por não defender claramente políticas que venham a restringir a acessibilidade a armamentos.

Distúrbios e games não são causas

Distúrbios mentais e jogos violentos de videogame não são determinantes para o comportamento agressivo que pode culminar em massacres.

Pesquisas divulgadas por universidades e pelo próprio governo americano, além de decisões da Suprema Corte, derrubam parte da tese de Donald Trump que aponta os dois elementos como causa dos ataques a tiros no país. 

Um exemplo é um estudo do FBI que ainda chama generalizações como as feitas por Trump de “enganosas” e “inúteis”. O relatório sobre o comportamento pré-ataque dos atiradores no país (período 2000-2013) conclui que, nos 63 casos analisados, apenas 25% dos atiradores tinham distúrbio diagnosticado por um profissional.

E pesquisa da Universidade Oxford mostra que não há relação entre o tempo que um jovem passa no videogame e comportamento agressivo. “Os resultados não confirmam essa ideia”, conclui o relatório.

Combate ao ódio é desafio nas redes

Os esforços para suspender o site 8chan, onde o atirador de El Paso publicou texto racista antes de matar 22 pessoas, expõem as dificuldades legais e éticas para controlar esses discursos que nas redes.

A empresa de infraestrutura digital Cloudflare disse que não mais prestaria serviços ao 8chan, dificultando que a plataforma se mantenha online.

Algumas horas mais tarde, um administrador de 8chan anunciou que o serviço migrará para a BitMitigate, que se define como um provedor de segurança “não discriminatório que opera em máxima coerência com a liberdade de expressão”.

Contraponto é essencial

Na Alemanha nazista, conforme registrou a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), a opinião pública se dividia basicamente entre radicais, que defendiam expulsão de todos os judeus do território do Reich, e moderados, que apoiavam a mesma medida, exceto para judeus alemães.

Diante dessa constatação, o cientista político Felipe Nunes defende a importância das mais diversas organizações se posicionem, para que a população tenha acesso a visões contrárias. 

"Se não houver divergência e oposição, pode-se criar uma noção de consenso que vai abrir brecha para que atos radicalizados aconteçam", observa ele, fazendo menção transversal à teoria da Espiral do Silêncio, segundo a qual uma opinião que é percebida como minoritária tende a ser omitida por medo de críticas e isolamento. (Com agências)