Mudanças

Guerra da Ucrânia é sinal de era de transição entre EUA, China e Rússia; entenda

Especialistas veem momento de tensão na geopolítica global e dizem não haver horizonte para fim do conflito no curto prazo

Por Gabriel Rodrigues
Publicado em 24 de fevereiro de 2023 | 06:00
 
 
Biden dá suporte financeiro ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky Foto: HANDOUT / UKRAINIAN PRESIDENTIAL PRESS SERVICE / AFP

Os confrontos diretos da guerra da Ucrânia não saíram das fronteiras do país do Leste Europeu. Mas suas repercussões são globais e também refletem um momento de virada da geopolítica global, que nunca esteve tão tensionada desde a Guerra Fria. Entre o questionamento da autoridade dos EUA, a resiliência da Rússia e a ascensão progressiva da China, países em todo o mundo assistem a um combate que pode virar a mesa do poder no mundo e definir o futuro de grande parte das nações pelas próximas décadas.

A guerra da Ucrânia é um sintoma de uma era de transição de poder global, reflete o diretor do Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas, Danny Zahreddine. O pesquisador destaca que a guerra coloca, de um lado, a aliança entre EUA e europeus, protagonistas da geopolítica desde o fim da Segunda Guerra Mundial, e, do outro lado, o poderio da Rússia e a influência chinesa. “Vivemos um período de mudança da ordem internacional. Já temos os principais antagonistas e a principal liderança que desponta é a China”, diz.

A China não se envolve militarmente no conflito e, oficialmente, adota uma posição de “equilíbrio” sobre a guerra. Mas continua importando da Rússia e, inclusive, aumentou os negócios com o vizinho — a relação econômica entre os dois bateu um recorde em 2022. O alinhamento entre Rússia e China, frente aos EUA e a União Europeia, dá a tônica da disputa de poder global que deve perdurar pelas próximas décadas, examina Zahreddine.

“São duas visões de mundo. A norte-americana sempre foi muito intervencionista, mas trazia como valor a democracia e a liberdade. No caso russo e chinês, estamos falando de uma perspectiva diferente, de soberania do Estado, em que o importante é que ele seja a representação da essência e da alma da nação, de seu povo. Estamos vivendo um momento de embate entre essas forças e não é uma coisa simples, porque envolve tradições”, diz. Já em 2009, o então presidente dos EUA, Barack Obama, prenunciava que a relação entre os EUA e a China moldaria o século 21.

No centro do conflito na Ucrânia, está a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que reúne os EUA e nações europeias da outra ponta do Atlântico. É um ator que sai fortalecido da guerra, analisa o professor de relações internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes.

“A Otan sem dúvida se fortalece. Ela foi fundada no fim dos anos 40 para reunir em torno de si os países da Europa Ocidental e da América do Norte e criar uma barreira para a difusão do comunismo e resistir à URSS e ao seu conjunto de países satélites. Ao longo do tempo, ela teve que se reinventar, com o fim da Guerra Fria nos anos 90 e com o fim da União Soviética, a Otan chegou a ficar, inclusive, disfuncional, sem razão de ser. Muito pouco tempo antes de acontecer essa guerra na Ucrânia, houve um encontro de chefes de Estado e de governo em que o presidente francês disse, em alto e bom som, que a Otan estava em um estado de morte cerebral. Alguns anos depois, o que se vê é uma Otan fortalecida, rejuvenescida, e que encontrou propósito para si”, avalia o pesquisador.  

A Rússia também se eleva com o conflito, defende o professor Danny Zahreddine. Ela sofreu uma série de sanções, dezenas de empresas internacionais fecharam suas unidades no país e é combatida com firmeza pelos ucranianos. Mesmo assim, não dá sinais de que recuará. “As sanções não surtiram os efeitos esperados, porque a Rússia não está totalmente isolada do mundo. E ela tem mais 17 milhões km² e tem ali dentro recursos naturais e recursos humanos. Não houve redução da venda de petróleo e do gás, porque os chineses, a Índia e o Sul global estão comprando mais. Ela continua exportando muito fertilizante e material tecnológico para a Ásia, a África e a América do Sul. Isso mostra o limite das sanções”, destaca.

Herói? Zelensky torna-se figura dúbia no cenário global

Ele estampou páginas da revista “Vogue” com a esposa, falou a centenas de celebridades na cerimônia do Grammy em 2022 e é convidado a falar em todos os grandes eventos da geopolítica global. O presidente da Ucrânia,  Volodymyr Zelensky, consolida-se, para alguns, como um herói da resistência contra a Rússia e, para outros, como uma figura sem traquejo político e uma “marionete” dos EUA. 

“Para a Europa e para os EUA, ele tenta frear o avanço dos russos e querem sustentar que ele é um herói nacionalista lutando pela liberdade da Ucrânia. Por outro lado, para quem luta contra a hegemonia norte-americana, ele é uma marionete da Otan e dos EUA, um líder que não se preocupa com a morte de seu povo, que sequer discute negociar terra por paz”, pondera o professor Danny Zahreddine.