“A favela é o quarto de despejo da cidade”. Caso estivesse viva, a autora dessa frase, a mineira Carolina Maria de Jesus, teria completado 107 anos neste mês de março. Foi essa fala que deu título ao seu livro mais conhecido, “Quarto de Despejo” (1960), obra na qual narra a própria vida, na extinta favela do Canindé, em São Paulo.

Oriunda uma família de escravos, nasceu em Sacramento, na região do Triângulo Mineiro, onde escreveu os primeiros poemas. Na capital paulista, para onde a família se mudou, foi mãe solteira e sustentou os três filhos como catadora de papéis. Seu entorno era composto por pessoas completamente analfabetas. Poucos a sua volta sabiam ler e escrever. Apenas ela teve acesso a dois anos de formação básica. Tempo suficiente para se apaixonar pelos livros e pela leitura.

“Olhei o céu. Parece que vamos ter chuva. Levantei, tomei café e fui varrer o barraco”. O trecho de sua obra mais famosa sintetiza como a escritora narrou a própria vida. O talento dela foi descoberto pelo jornalista Audálio Dantas, que em meio a uma reportagem surpreendeu-se ao vê-la ameaçando seus vizinhos de que os incluiria em um livro.

Dantas chegou a narrar o primeiro encontro. Contou que se aproximou e pediu para ver o tal livro. Ao chegar no barraco de Carolina, pôde ver as anotações feitas pela mulher em cadernos — vários deles catados no lixo. Tempos depois, o jornalista descreveu o cotidiano dela: “Se tem pão, come e dá aos filhos. Se não tem, eles choram, e ela chora também. O pranto é breve, porque ela sabe que ninguém ouve, não adianta nada”.

Seu título inicial foi publicado há 60 anos. Traduzido para 13 idiomas, em 40 países, “Quarto de Despejo” já vendeu aproximadamente 3 milhões de exemplares. Ao longo dessas décadas, Carolina se tornou intérprete de um país invisível que mora na periferia e sofre com a pobreza e com o racismo.

“Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro”. Com reflexões objetivas e realistas, a escritora segue sendo uma grande inspiração, especialmente para muitas mulheres que, como ela, possuem poucas chances de prosperidade no universo literário.

A história da literatura brasileira carece de escritoras mulheres negras e Carolina Maria de Jesus preenche parte dessa lacuna. Mesmo que ainda desconhecida por uma parcela muito significativa dos brasileiros, é preciso engrossar o coro dos que sonham em vê-la como leitura de estudantes país adentro. Sobretudo para aqueles que têm os sonhos mais distantes de serem realizados.

Em fevereiro deste ano, Carolina recebeu uma homenagem póstuma. Ela, que morreu em 1977, ganhou o título de doutora honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. De 12 junho a 7 de novembro, o Instituto Moreira Salles, em São Paulo, apresentará uma exposição dedicada à escritora mineira. Uma protagonista importante da história nacional que, mesmo muitas vezes invisibilizada, tem um papel especialmente significativo para a história da população negra brasileira. A exposição revelará a autora como uma intérprete imprescindível para compreender o país.

Vale lembrar que até hoje a Academia Brasileira de Letras não teve entre seus célebres imortais uma mulher negra. Saudar o legado de Carolina é reconhecer a existência de um Brasil que, mesmo vivo e pujante, muitas vezes não vemos.