Entender a guerra da Ucrânia exige entender por que a Ucrânia é tão importante para as autoridades russas a ponto de optarem por arcar com os custos políticos de invadi-la (e que, diga-se de passagem, talvez sejam maiores que o esperado por aquelas lideranças) e por que elas se decidiram por invadi-la neste momento.

A extinção da URSS, em 1991, deixou insatisfeitos muitos membros da elite política e burocrática da Rússia. A ascensão política do hoje presidente da Rússia, Vladimir Putin, foi a expressão dessas forças políticas. Externamente, tinham a expectativa de, no mínimo, estabelecer uma zona de influência junto aos antigos membros da União Soviética e, no máximo, restabelecer algo próximo da antiga capacidade de atuação externa – mesmo sabendo que, inicialmente, não havia recursos políticos nem materiais para essa ambição maior.

Isso não significa que essas forças políticas deixariam de aproveitar qualquer oportunidade para obter ganhos nessa direção, ainda que pequenos.

O peso da Ucrânia era maior, por duas razões: a Ucrânia herdara armamentos nucleares da URSS (como o Cazaquistão); e Sebastopol, na Crimeia, era a principal base naval soviética, para a qual era e é muito difícil, por razões geográficas, obter substituta à altura. Após enorme esforço diplomático, em troca de garantias contra agressão externa dadas por EUA, Reino Unido e Rússia, a Ucrânia abriu mão de seus armamentos nucleares em favor da Rússia e aderiu ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP).

É nesse contexto que ocorre a expansão da Otan junto aos antigos Estados-membros da URSS e aos antigos membros do Pacto de Varsóvia, vários destes querendo proteger-se da Rússia. Ao longo do tempo, alguns foram efetivamente incorporados como membros plenos, com destaque para Estônia, Letônia e Lituânia. Já outros, inclusive a Ucrânia, estabeleceram parcerias com a Otan, possivelmente na expectativa de virem a integrá-la formalmente – o que não se materializou. A ação russa na Crimeia, em 2014, sugere fortemente que, pelo menos no caso da Ucrânia, a ambição de controlar mais diretamente a área pesava mais fortemente que a expansão da Otan. O mais surpreendente, entretanto, é que isso tenha sido aceito tão facilmente – o que pode ter encorajado o presidente Putin.

A maneira como se deu o desastre da retirada dos EUA no Afeganistão e principalmente o que se sucedeu na esteira daquela retirada parecem ter criado uma percepção de incapacidade e de falta de firmeza e vontade da parte dos EUA, o que pode ter gerado incentivos para a ação de quem queira mudanças de maior porte na política internacional. Ao mesmo tempo, a crescente plausibilidade de que as maiorias nas duas Casas do Congresso dos EUA vão passar para a oposição a partir das eleições de novembro próximo sugerem que essa janela de oportunidade pode se fechar rapidamente.

Ainda assim, o presidente Putin parece ter, gradualmente, testado a reação dos EUA: primeiro, a concentração de forças ao redor da Ucrânia, em conjunto com uma intensificação da retórica; o anúncio de demandas políticas – inicialmente em relação a um eventual acesso da Ucrânia à Otan, depois exigindo o desarmamento da Ucrânia; o reconhecimento de regiões separatistas na Ucrânia, junto com uma declaração que questionava a própria existência do Estado ucraniano. Em todos esses passos, a liderança demonstrou falta de firmeza e até receio de enfrentar a Rússia. Ao que parece, essa tibieza encorajou o presidente Putin a se decidir pela invasão à Ucrânia e a ameaçar Suécia e Finlândia (que nunca foram membros do Pacto de Varsóvia e muito menos da URSS) para que não entrem na Otan.

As declarações do presidente Putin de que a Ucrânia não tem tradição de ser um Estado e que seu futuro só pode se dar em união com a Rússia apontam, pela primeira vez desde 1991, para uma contestação explícita do próprio princípio da soberania, parecendo expressar a ambição maior de efetivamente expandir a Rússia. Além disso, o fato de que as garantias à Ucrânia não foram honradas nem pela Rússia, nem pelos EUA (o Reino Unido tinha bem menos condições de honrá-las isoladamente, mesmo se se dispusesse a tanto) pode gerar, em outros países, o entendimento de que renunciar a armamentos nucleares ou deixar de obtê-los em troca de garantias pode não surtir o efeito esperado. Se isso ocorrer, tratar-se-á de um desdobramento particularmente grave da atual situação, implicando um aumento significativo do risco de um evento envolvendo explosões nucleares.

Em suma, é possível que estejamos diante de um evento do porte da Queda do Muro de Berlim em termos de reconfiguração dos arranjos de expectativas políticas que tendem a conformar as atitudes dos atores internacionais – só que, desta vez, com expectativas bem mais sombrias.

 (*) Eugenio Diniz também é membro do International Institute for Strategic Studies (IISS), Londres.