Neste último dia 16 de dezembro, impetramos em nome do Instituto de Garantias Penais (IGP) um habeas corpus coletivo perante o Supremo Tribunal Federal em favor de todas as pessoas que estão submetidas a investigações e a processos criminais, bem como de todos os presos em flagrante cuja audiência de custódia não tenha sido realizada em 24 horas, que têm sido impedidas de exercer os direitos consagrados pela Lei 13.964/2019 (pacote anticrime), por força da decisão monocrática coatora proferida pelo eminente ministro Luiz Fux, há quase um ano, nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

A referida decisão, contra a qual nos insurgimos, suspendeu a eficácia da implantação do instituto chamado “juiz de garantias”, além da determinação legal de alteração do juiz sentenciante que conheceu de prova declarada inadmissível, da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial e da liberalização da prisão pela não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas, importantes garantias que estão previstas no denominado pacote, aprovado pelo Congresso Nacional após intensa deliberação.

Após a apreciação da medida cautelar, a Advocacia Geral da União prestou informações, nas quais se manifestou pelo não conhecimento das ações, “tendo em vista o primado da separação de Poderes” e, no mérito, pela improcedência dos argumentos lançados pela parte autora, não havendo qualquer vício de inconstitucionalidade nos artigos impugnados”. No caso das ADIs 6.298 e 6.305, acrescentou ainda que não merecem conhecimento “tendo em vista a ilegitimidade ativa da parte autora (falta de pertinência temática)” prossegue. 

De igual forma, o Congresso Nacional prestou informações se manifestando pela improcedência das ações, não vislumbrando inconstitucionalidade nos dispositivos impugnados, além de destacar que “a interferência do Poder Judiciário nas funções típicas do Poder Legislativo só pode ser tolerada em casos excepcionalíssimos e constitucionalmente permitidos, o que não ocorre na ação em tela”. 

Vale salientar que, em razão da decisão ora combatida, um número relevante de pessoas está submetido à persecução penal e à investigação criminal sem que sejam respeitadas as novas regras do juiz de garantias (artigos 3°-A a 3°-F do CPP), do novo procedimento para arquivamento de inquéritos (artigos 28, caput) e da impossibilidade de o juízo que conhecer da prova ilícita proferir sentença ou acórdão (artigo 157, parágrafo 5°, do CPP). Há, portanto, um número elevadíssimo de indivíduos que estão submetidos a constrangimento ilegal decorrente da não aplicação das garantias instituídas em favor dos investigados e réus pela Lei 13.964/2019. Em síntese, a aprovação desse diploma legal por amplíssima maioria do Congresso Nacional teve por objetivo tornar o processo penal brasileiro mais compatível com o sistema acusatório, de matriz constitucional.

Além disso, os avanços levados a efeito pelo legislador no sentido da realização de um processo penal justo tiveram sua eficácia paralisada por decisão monocrática cuja não submissão a referendo pelo Plenário consubstancia grave constrangimento ilegal imposto a um número indeterminado – embora passível de determinação – de investigados e réus, que se encontram continuamente privados do exercício de importantes garantias processuais legitimamente criadas pelo legislador ordinário.

Em especial, a alteração legislativa referente ao juiz de garantias pode ser considerada como o principal avanço normativo em matéria de processo penal brasileiro das últimas décadas, que certamente haverá de impactar profundamente a sistemática da persecução penal, garantindo maior efetividade aos princípios constitucionais da presunção de inocência e da imparcialidade do julgador.

Os atos investigatórios, na fase de inquérito policial, dispõem acerca de direitos fundamentais do investigado e acabam por comprometer a imparcialidade do julgador, uma vez que ele terá antecipadamente contato e poder decisivo a respeito das provas a serem produzidas em face do investigado. Com a implementação do juiz de garantias, poder-se-á superar os riscos decorrentes da confusão entre os papeis de investigar, acusar e julgar.

Para se chegar ao texto final do Pacote Anticrime, foram realizadas mais de 30 audiências públicas pelo Congresso, nas quais foram ouvidos diversos juristas e representantes da sociedade civil, que contribuíram para a conclusão, pelo Parlamento, acerca da imprescindibilidade da criação da referida figura para resguardar os direitos dos cidadãos submetidos a uma persecução penal.

A clara divisão da atividade jurisdicional, como prevista pelas disposições que implementam o juiz de garantias, pode evitar os efeitos constatados pelos citados pesquisadores, os quais, inobstante a boa-vontade dos juízes no tocante à preservação da imparcialidade, são inerentes à natureza humana.
A tarefa de supervisão que passará a ser realizada pelo juiz de garantias já se encontra incumbida ao Poder Judiciário, de forma que o que se exige pelo Pacote Anticrime – e que, antes mesmo de tal previsão, vinha sendo realizado em diversas varas da jurisdição brasileira – é tão somente uma reorganização dessa incumbência.

Assim sendo, o juiz de garantias se mostra como um verdadeiro progresso na garantia de direitos fundamentais do investigado, resguardando-se maior efetividade à exigência constitucional da imparcialidade do magistrado e do princípio da presunção de inocência. Nessa mesma linha, conclui-se igualmente pela manifesta importância da alteração do juiz sentenciante que conheceu de prova declarada inadmissível (Artigo 157, parágrafo 5º, do Código de Processo Penal) para salvaguardar os mencionados direitos constitucionais.

Para além isso, é preciso registrar, ainda, que a decisão que suspendeu a eficácia dos dispositivos da Lei 13.964/2019 não se coaduna com os parâmetros doutrinária e jurisprudencialmente firmados a respeito dos limites da intervenção da jurisdição constitucional no controle de constitucionalidade das leis. 

A Constituição Federal de 1988 é produto de um processo constituinte aberto e participativo, criada em um contexto de transição democrática e em meio à reorganização das forças políticas no Brasil. Por essa razão, a Constituição aborda os mais diversos temas, positiva uma grande quantidade de direitos e provê as bases do funcionamento do Estado. Até em decorrência de sua origem pluralista, a Constituição brasileira é uma carta aberta, que se encontra permanentemente permeável a novos conteúdos, novos direitos e novos valores . As suas disposições não esgotam a regulação do âmbito material sobre o qual incidem: demandam discussão e decisão posteriores, cujo protagonismo cabe ao Poder Legislativo, que é livre para decidir dentro das possibilidades do texto constitucional . Por isso mesmo, dentro desse plexo de possibilidades e obedecidos os procedimentos democráticos de legitimação, a decisão legislativa será legítima.

Cabe ao Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, apenas verificar se a norma criada pelo legislador se situa dentro dos limites constitucionalmente estabelecidos. Não lhe compete substituir a decisão legislativa legítima por outra que lhe pareça mais oportuna, conveniente ou adequada. Assim já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, em acórdão da lavra do ministro Luiz Fux, no julgamento da ADI 1923, em 16.04.2015. 

Nenhuma dessas hipóteses se faz presente relativamente à discussão sobre a constitucionalidade dos dispositivos da chamada “Lei Anticrime” que tiveram sua eficácia suspensa pela decisão monocrática de ministro da Suprema Corte.

Com base nessas premissas – repita-se, acolhidas amplamente pela jurisprudência desse egrégio STF –, não cabe ao Poder Judiciário decidir sobre a conveniência deste ou daquele modelo de investigação criminal ou de sistema processual penal, mas apenas verificar se as opções legislativas feitas de maneira democrática pelo Congresso Nacional operaram dentro da margem de conformação aberta pela Constituição.

Apenas quando a opção legislativa seja claramente contrária às normas constitucionais será possível declará-las inconstitucionais. As críticas que podem eventualmente ser dirigidas à opção legislativa – tanto no que diz respeito à criação do juiz de garantia como das suas repercussões no âmbito da investigação criminal e do processo criminal – não podem ter o condão de torná-las nulas, sob pena de perigosa invasão judicial da esfera de atribuição do parlamento.

A suspensão liminar de um importante conjunto de dispositivos legais aprovados por larga maioria parlamentar – adotando o instituto do juiz de garantia com base em ampla experiência comparada – produz grave abalo ao princípio de separação de poderes. Como se disse, a decisão sobre a criação ou não do juiz de garantia – bem como da sua repercussão no sistema processual penal – cabe exclusivamente ao Congresso Nacional.

Com o devido respeito, o inconformismo com a opção legislativa – por mais respeitável que seja – não chega sequer a fragilizar a evidente constitucionalidade da decisão parlamentar, que “se insere na liberdade de conformação do legislador, que tem legitimidade democrática para escolher os meios que reputar adequados para a consecução de determinados objetivos, desde que eles não lhe sejam vedados pela Constituição nem violem a proporcionalidade”.

Por essas questões, tendo em vista a imprescindibilidade do respeito às garantias penais previstas na Constituição Federal, bem como à consagração da separação e equilíbrio harmonioso entre os Poderes, é fundamental a impetração do referido habeas corpus contra a mencionada decisão proferida pelo exímio ministro Luiz Fux, para fazer prevalecer a vontade popular e celebrar o pleno exercício democrático da atividade legislativa, flagrantemente atacado por decisão liminar que, já prestes a completar um ano sem submissão para apreciação colegiada pelo órgão máximo do Supremo Tribunal Federal, o Plenário, subverte o ideal de colegialidade da Corte, a própria sistemática processual do controle de constitucionalidade e, no que é mais grave, as balizas do Estado democrático de direito.

Coautores: advogados Marcelo Turbay Freiria, Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves, Ananda França de Almeida e Ademar Borges