FABRÍCIO CARPINEJAR

Por mais desenho animado

Os desenhos animados da infância tinham uma mensagem inspiradora: quem tenta passar a perna sempre se dá mal no final

Por Fabrício Carpinejar
Publicado em 08 de março de 2024 | 03:00
 
 
Fabricio-Carpinejar-Desenhos Foto: Editoria de Arte

Minha esposa é fã de desenhos, de animações, de filmes infantis. Não censuro Beatriz. Eu entendo o que essa mineira sente: procura um lugar em que a magia do bem prevaleça, já que a realidade anda escassa de exemplos edificantes.

O amor depende dos contos de fadas. É o que nos fará acordar mais cedo para tomar o café da manhã juntos, é o que nos motivará para manter a família unida, é o que nos dará força para não nos vermos esmagados por uma existência sem sentido.

Os desenhos animados da infância tinham uma mensagem inspiradora: quem tenta passar a perna sempre se dá mal no final.

Coiote dedicava-se integralmente a conseguir capturar o Papa-Léguas, mas falhava em todas as suas ciladas, e restava depenado e desmoralizado em suas montanhas da vaidade.

Tom montava armadilhas, ratoeiras, emboscadas para Jerry, e virava vítima das marteladas, das machadadas, das queimaduras, das mordidas, dos desabamentos de pedras pretendidos contra o ratinho.

O caçador Hortelino aprontava para Pernalonga, e terminava caçado e caçoado pela sua presa.

Dick Vigarista e Muttley trapaceavam nas corridas malucas, e nunca obtinham o pódio.

O gato Frajola vivia perseguindo o passarinho Piu-Piu, que encontrava a blindagem do acaso e saía ileso das investidas.

Assim, as crianças entendiam que não era azar, e sim reparação.

Por mais que ocorressem planos mirabolantes e estudados à exaustão pela vilania, imperava uma proteção invisível e secreta das coincidências sobre a ciência do mal.

Ainda quero crer que o universo conspira a favor de quem faz o bem, de quem pratica a equidade do cuidado, de quem não sucumbe aos estratagemas escusos da inveja e do ciúme, de quem não se vale da intriga e da fofoca para alcançar o que não é seu nem tenta arrancar a prosperidade e alegria alheias.

Tudo começa em não cobiçar o posto de trabalho, o casamento, a amizade, a fartura do mais próximo.

Respeitar o seu lugar, jamais aceitar ganhos desonestos, jamais sair do quadrado dos méritos garante a reciprocidade da justiça.

Bem-aventurados são aqueles que servem os outros sem buscar vantagens e benefícios secundários, sem mudar o tratamento de acordo com o sobrenome, a função, a influência.

O destino é caprichoso em seus desígnios: devolve os presentes a quem não olhou para a aparência, a quem aspirou ao melhor da convivência na discrição imbatível da gentileza.

Virá a recompensa pela escolha do caminho da retidão e da decência. Pode demorar, porém a alma chega ao paradeiro da gratidão, não ficando presa nas alças da culpa, na bagagem da maldade.

Assim como virá a maldição para o bullying e para o escárnio, para a traição e para a deslealdade.

Há uma imunidade no certo, e não há impunidade no errado.

O sucesso do ódio ou da raiva dura pouco. São ciclos efêmeros diante da longevidade da verdade, logo a pessoa se vê enredada no seu próprio poder de destruição.

Você nem precisa se vingar daqueles que foram o Coiote, o Tom, o Hortelino, o Dick, o Muttley, o Frajola em sua vida. Deixe a posteridade agir. O que vai volta dobrado. Ao procurar a facilidade, o agressor só encontrará o castigo.

A justiça não é exclusividade das crianças. Será que não está na hora de os adultos, seguindo o exemplo de Beatriz, voltarem a assistir a desenhos e abandonarem o endeusamento dos anti-heróis?

Não podemos sequer confiar nas novelas. Em “Fuzuê”, teledramaturgia da Globo que recém terminou, a vilã Preciosa, depois de consecutivas falcatruas, tem um desfecho feliz no Caribe, gastando a fortuna de um roubo.