FERNANDO FABBRINI

Asas de anjo

Com as asas do seu indiscutível talento, Bruno Ganz agora subiu aos céus

Por Da Redação
Publicado em 21 de fevereiro de 2019 | 03:00
 
 
Com as asas do seu indiscutível talento, Bruno Ganz agora subiu aos céus. De lá deve continuar a refletir sobre a nossa intrigante condição ambígua de bichos e de anjos Hélvio

Aos 77 anos, o ator suíço Bruno Ganz virou estrela, como se diz por aí. Creio que para milhares de jovens esse nome não diga nada. Porém, Ganz marcou uma época e uma geração de fãs no elenco de “Asas do Desejo”, de 1987, dirigido por Win Wenders. Bacharel em medicina, filosofia e artes, Wenders colecionava fiascos quando foi convidado por Francis Ford Copolla para novas produções nos EUA. Deu sorte: vieram “Paris, Texas” e, depois, “Asas do Desejo”, no qual Bruno Ganz pôde esbanjar seu talento.

Os exibidores nacionais inventaram o título “Asas do Desejo” para o filme, cujo nome original era “O Céu sobre Berlim”. E é na capital alemã, antes da queda do muro, que se desenrola o drama premiadíssimo que virou cult. Na nostalgia do preto e branco, nas longas tomadas, no clima nebuloso e introspectivo, o filme mexe com questionamentos profundos de nossas almas.

Na sombria Berlim pós-guerra, dois anjos – Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander) – perambulam pela cidade. Como anjos, são invisíveis aos mortais e não podem sentir as dores e as alegrias humanas. Porém, tem a capacidade de ler os pensamentos das pessoas e, assim, tentam confortá-las da solidão e da depressão. O problema é que Damiel (Ganz) se apaixona pela linda trapezista Marion. Para tocá-la e consumar seus desejos, ele precisa deixar de ser anjo e se tornar homem, mortal. Um anjo caído, que passou por algo semelhante e aprendeu a fazer a transição entre os dois mundos, pode tentar ajudá-lo.

“Se o homem fosse um animal ou um anjo, não sentiria angústia. Mas, sendo uma síntese de ambos, angustia-se. E tanto mais sente a angústia quanto mais humano for”, refletiu assim Soren Kierkegaard, inspirando a trama. Cena memorável é o encontro de Ganz e Peter Falk (o inesquecível detetive “Columbo”) num trailer de lanches. De propósito, ao fundo lê-se num terreno baldio a pichação “Wer bunker baut wirft bomben”, que significa “aqueles que constroem bunkers jogam bombas”.

Curiosidade: como era proibido filmar o Muro de Berlim, construíram uma réplica em madeira pintada. Na verdade foram duas, já que a primeira, para desespero do diretor, empenou após pegar a primeira chuva.

Em 2000, Bruno Ganz deu seu brilho ao engraçadíssimo “Pão e Tulipas”. A comédia aborda a condição muito frequente de uma mãe de família submissa, tratada com grosserias frequentes por seu marido imbecil e seus filhos insuportáveis. Numa chatíssima excursão de casais ela é abandonada num posto de gasolina e então decide aventurar-se por conta própria, sem dinheiro, porém longe da tirania doméstica. Livre, leve e solta, num restaurante em Veneza, ela conhece Fernando Girassol (Bruno Ganz) e, através dele, em clima de sonho, reencontra-se como mulher romântica e como artista – coisas que o casamento a fez esquecer.

Ganz participou de quase uma centena de filmes e séries. Um dos últimos foi o tenebroso “A Queda”, onde ele encarnou Adolf Hitler nos derradeiros dias da Segunda Guerra. Para interpretá-lo, Bruno – suíço e poliglota – treinou exaustivamente o sotaque típico do ditador com a ajuda de um ator nascido na mesma região de Hitler. E passou um mês estudando pacientes que sofriam de Parkinson, reproduzindo com perfeição os efeitos da enfermidade no personagem. Em uma entrevista, Ganz confessou que o script tão pesado tornou necessário o acompanhamento dos atores por um grupo de psicólogos. Houve episódios de somatização, mal-estares e até depressões no set. Por isso improvisaram uma espécie de terapia ou dinâmica de grupo após cada dia de filmagem, para levantar o astral.

Com as asas do seu indiscutível talento, Bruno Ganz agora subiu aos céus. De lá deve continuar a refletir sobre a nossa intrigante condição ambígua de bichos e de anjos.