Fernando Fabbrini

Escreve todas as quintas-feiras no Portal O Tempo

Crônica

Dinossauros sobre rodas

Publicado em: Qui, 13/02/20 - 03h00

Tempos atrás, incomodado com os crescentes congestionamentos de trânsito e a ocupação assustadora das ruas pelos automóveis, inventei por minha própria conta uma pesquisa diferente. No início era só uma brincadeira, puro lazer. Porém, os resultados foram curiosos – e alarmantes.

Com dados do Detran, montei uma lista de carros emplacados naquele ano e separei-os por categorias: carros de passeio, vans, caminhonetes, caminhões. Em seguida, com a colaboração de amigos feras em matemática, calculamos a área média ocupada por eles. É fácil: basta multiplicar a largura pelo comprimento e temos, em metros quadrados ou frações, o tamanho do bicho. Naturalmente, um caminhão ou uma van ocupam mais espaço que um carro de passeio três volumes, e este é maior que um carro pequeno etc.

Fizemos, então, uma simulação imaginando o que aconteceria se todos esses veículos novos fossem estacionados uns ao lado dos outros e puxamos o total dessa área coberta pelos carros. Nossa meta era calcular quanto Belo Horizonte perdia de espaço efetivamente a cada ano em relação aos automóveis. Ora: ruas e avenidas não esticam. Ninguém pode se esquecer da lógica primária: dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, e mais carros nas ruas representam pessoas cada vez mais espremidas, acuadas. Já pensaram nisso?

Finalmente, após dois meses de pesquisa chegamos aonde queríamos: só naquele ano, nossa cidade perdeu para os automóveis uma área próxima à de 23,7 estádios do Mineirão. É mole? Sem falar que consideramos apenas carros 0 km, deixando de lado outros grupos, como o dos carros transferidos de outras cidades ou reemplacados. Vale lembrar que lá se vão muitos anos. Apesar da preferência pelos carros de aplicativos, o desejo do carro novo particular (quanto maior, melhor) permanece na lista dos “sonhos de consumo”.

Belo Horizonte é apenas uma amostra do que acontece hoje nas cidades brasileiras. Estamos na contramão da história. Muitos países vêm adotando medidas restritivas ao uso do transporte individual e investindo pesado em transporte público de qualidade. Linhas de metrô e de outros coletivos modernos vão sendo abertas. A indústria automobilística projeta carros menores, mais inteligentes; muda a tecnologia para combustíveis alternativos.

Na Europa e nos EUA crescem empresas do tipo Car to Go, Drive Now e outras, oferecendo carros elétricos ou híbridos para uso eventual. Os empresários do setor, atentos à conjuntura socioeconômica e ambiental, concluíram que o futuro dos automóveis está no usufruto – e não na posse. Trata-se, portanto, da evolução do aluguel como o conhecemos. Os carros ficam estacionados aqui e ali, à espera do cliente devidamente cadastrado. Basta, então, localizá-los por um aplicativo e usar uma chave codificada. Roda, passeia, viaja – e deixa o carro onde preferir. Nada de IPVA, despesas com seguro, estacionamento, manutenção.

A meta das empresas é ganhar dinheiro, sim. E, de tabela, as cidades ganham menos carros das ruas, menos poluição. Precisamos de mais parques, calçadões, áreas de lazer, ciclovias e trilhas para caminhadas a pé. E não de viadutos, túneis, pontes, trincheiras e estacionamentos para melhorar – segundo os tecnocratas – a “mobilidade”.

Porém, tudo isso envolve – principalmente – uma virada mais profunda na cabeça das pessoas, uma revisão de conceitos nesses tempos de mudanças dramáticas. Porque, para muitos proprietários (e publicitários...), carro continua sendo símbolo de status, vaidade, sucesso, potência e outros valores que os psicanalistas conhecem bem. Já para outros, como eu, carros se tornaram dinossauros em fase de extinção. E está cada vez mais difícil para as cidades conviverem com esses bichos.

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