Conheço razoavelmente bem a vizinhança. O responsável, em parte, é Bruno, nosso cachorro: todas as manhãs saímos para uma voltinha no bairro. Mesmo variando algumas rotas – especialmente no domingo, com as ruas desertas – acabamos, na prática, percorrendo os mesmos trajetos, com paradas estratégicas em certos jardins e gramados. (Sim, eu recolho o cocô do meu cachorro. Mas não largo aquele odioso pacotinho de plástico amarrado num canto qualquer).

Essa rotina acaba se envolvendo com as rotinas das outras pessoas circulando no mesmo horário. Voltando aos poucos à normalidade, surgem caras familiares no ponto de ônibus; casais de mãos dadas rumo ao trabalho; estudantes apressados, lavadores de carros, secretárias, funcionárias da padaria e do supermercado, porteiros e, é claro, outros donos e donas de cães a passear. Enfim: a gente acaba se conhecendo de vista e formamos uma comunidade silenciosa matinal; trocamos olhares e sorrisos discretos; alguns até arriscam um “bom dia” abafado e escondido pela máscara.

Semana passada o pacato ir-e-vir foi violentamente transformado. Em minutos, a notícia se espalhou pelo quarteirão. Pessoas assustadas levavam as mãos ao peito. Mães, puxando os filhos pelo braço, atravessavam a rua apavoradas. Me contaram que um rapaz – já conhecido no bairro pelo seu jeito estranho – descera a rua ameaçando pessoas com uma faca, aquelas mesmas que eu sempre vejo pela manhã, calmas e sonolentas, no ponto de ônibus. Foram várias tentativas e três ataques. O resto foi o que deu no jornal: os chamados populares perseguiram o rapaz, conseguiram retirar sua faca e o contiveram. Foi levado por um carro de polícia que passava por ali.

Depois, as versões. Segundo alguns vizinhos, ele tinha sérios problemas mentais e aquele teria sido apenas mais um de seus surtos psicóticos. Para outros, na verdade, ele era viciado em crack e atacara as pessoas movido por uma síndrome de abstinência, explicação mais provável nesses tempos de pandemia.

Daí, a gente começa a pensar nos caminhos da droga, caminhos tortuosos que alcançam até meu quarteirão. Quem a produz, trafica ou comercializa, não tem a menor dúvida de seus efeitos na mente e no corpo de um ser humano. Mesmo assim, encaram a coisa “normalmente”, como trabalho, meio de vida, só isso. São milhares de envolvidos na extensa cadeia onde corre muito, muito dinheiro.

Além dessa, existe outra classe que gravita em torno da droga: são aquelas autoridades, gente com algum tipo de poder, cujo preço da consciência varia em função do cargo e da oferta negociada. Certos policiais, juízes, advogados que, provavelmente, não lambuzam suas narinas no pó branco. Mas que não hesitam em fazer vistas grossas, compactuar, colaborar, assinar pareceres, sentenças, habeas-corpus e outras medidas que liberam responsáveis pelo fluxo rotineiro do malefício. As decisões do STF proibindo ação da polícia nas favelas vieram a calhar. Deve ter muito traficante agradecendo a providencial parceria do vírus para os negócios.

E, finalmente, temos aquele grupo dos usuários charmosos – gente chique, com poder aquisitivo, para os quais a droga é um divertimento, um luxo, uma transgressão social que se permitem entre sorrisos, música e viagens em torno do próprio umbigo.

Do tal rapaz com a faca na mão eu não tenho o que comentar. Seus olhos esbugalhados e a expressão de ódio pela vida já bastam. Já sobre os produtores, os corruptos e os elegantes que perpetuam o ciclo diabólico da droga no nosso dia a dia, não haveria espaço nesta coluna para o que eu lhes diria, se pudesse.