FERNANDO FABBRINI

Fantasias finais

O Carnaval é a última oportunidade pra gente grande resgatar essas brincadeiras de criança. Vale tudo e qualquer coisa

Por Da Redação
Publicado em 14 de março de 2019 | 03:00
 
 
O Carnaval é a última oportunidade pra gente grande resgatar essas brincadeiras de criança. Vale tudo e qualquer coisa. Porém, atenção: é só brincadeira mesmo. E mais atenção: só dura uns dias Acir Galvão

Fiquei em dúvida se ainda valeria a pena falar do Carnaval; temia aborrecer meus leitores com a repetição do assunto. Depois, relaxei: se o dito festim profano teve prorrogação regulamentar, uma simples crônica a mais não fará mal.

Insisto porque o Carnaval deste ano mereceria uma profunda análise... psicanalítica. Pensei recorrer a um grande amigo, o dr. Cláudio Pérsio – sumidade das profundezas da mente. Já eu, embora nem um pouco versado nos meandros do ego, id e superego, tive cá meus “insights”.

De cara, acho que muitos foliões de hoje não brincaram quando crianças. Não falo de “brincar” no sentido carnavalesco, mas de brincadeira infantil, de bagunça. A gente improvisava uma capa com toalha de banho; se vestia de príncipe, gladiador. Fazia uma lança com um pedaço de bambu; subia no abacateiro como se fosse o mastro de um navio pirata; canhões de mamona derrubavam muralhas de castelos. Matávamos uns 20 bandidos do faroeste por dia, até que nossas mães nos arrastassem pro banho – imundos de poeira, suor e imaginação saciada.

Que curioso: apesar de armados, implacáveis e ferozes, nenhum dos sanguinários de minha turma de meninos virou bandido de verdade. Contrariando os psicólogos modernos, deixaram suas pistolas de espoleta na gaveta e hoje são adultos pacíficos, pais de família bonachões, maridos carinhosos, companheiros de boa prosa.

O Carnaval é a última oportunidade pra gente grande resgatar essas brincadeiras de criança. Vale tudo e qualquer coisa. Porém, atenção: é só brincadeira mesmo. E mais atenção: só dura uns dias. Depois voltamos à realidade, à busca dos difíceis tesouros da vida, às batalhas do cotidiano, essas coisas que fazem de nós pequenos heróis anônimos das contas pagas.

Entretanto, ainda há alguns que não captam bem o espírito da farra. Levam o troço a sério. Contagiados pela multidão que samba, viajam não em mares revoltos como corsários, mas em oceanos de maionese. Nas ondas da imaginação malresolvida enchem a cara de pinga, purpurina e delírios.

Teve a fantasia do Bagunceiro Revolucionário, a favorita dos rebeldes que incitaram a massa a derrubar a República. A cerveja não foi capaz de fazer descer redondo pela garganta o resultado das eleições. Meu Zeus! Entendo: virou mania não aceitar o fim do jogo, da campanha política, da relação amorosa. Pra mim, eleição é igual a futebol. Quem perdeu, perdeu; guarde as bandeiras, avalie os erros e treine duro para a revanche. Culpar o juiz ou as condições do gramado é puro mi-mi-mi.

Outra engraçada foi a fantasia das Guerreiras Baticuns. Queimei minhas sinapses tentando compreender os objetivos da nova atitude político-carnavalesca-tupiniquim. Estudioso das palavras, fui obrigado a rever o vocábulo “guerreira”, agora proferido orgulhosamente diante das câmeras de TV. “Guerreira”, antes, identificava – por exemplo – a mulher batalhadora, que rala das sete às sete, que segura a barra em casa, que cuida dos filhos, que sustenta a família, que estuda pra melhorar de vida, que anda de ônibus lotado e ainda arruma tempo para ajudar quem precisa. Apaguem isso: agora no Brasil “guerreira” é simplesmente “mulher de qualquer idade que toca tambor ou tamborim sorrindo num bloquinho de Carnaval”. Tá vendo? Agora é cult.

Até o Rei Momo foi usurpado. Perdeu o trono com o surgimento do impostor “Sou Presidente, e daí?”, alegoria de um velho ator brigão e boquirroto. Se esse reinado fosse restrito aos três dias, tudo bem, seria gozado mesmo. Mas, não: seus súditos estão levando a sério! Imagine, então, se o saltimbanco resolve marchar sobre Brasília, escoltado pelo batalhão dos Bagunceiros Revolucionários e pelas Guerreiras Baticuns? Haja samba, cerveja, catuaba e banheiros químicos pelo trajeto.

Chega de brincadeira. Restam as tristes fantasias de uma nação que insiste em não ser levada a sério.