FERNANDO FABBRINI

Fatores cósmicos

Instalaram em mim manias de justiça, de paz, de amor, de honestidade. Me enfiaram na alma toneladas de indignação e sonhos de um mundo melhor

Por Fernando Fabbrini
Publicado em 19 de dezembro de 2019 | 03:00
 
 

Foi até rápido: uma dorzinha do lado virou uma dor forte, tomando conta do corpo inteiro.

Veio a tonteira, e tudo escureceu. Quando voltou a si, viu o túnel luminoso. Sentiu-se leve, flutuando. Algo o mandava seguir em frente, e ele caminhou, ressabiado. Foi quando ouviu a voz:
– Bem-vindo! – o tom era tranquilo, amigável.
– Quem tá aí?
– Sou quem você quiser. Alguns me chamam de Deus; outros, de Grande Luz; outros, de Suprema Energia. Mas são apenas palavras, nenhuma é capaz me definir.

– Dá pra te ver, pelo menos? É muito esquisito só um vozeirão destes...

Um redemoinho brilhante surgiu num segundo, tomando forma humana. Era um coroa simpático, de bermuda, assentado numa cadeira. Havia outra ao lado. O ser luminoso apontou-a:
– Senta aí; relaxe, amigo! Vindo... do Brasil, confere? E gostou?
– Bem... Teve de tudo, né? Deu pra rir e pra chorar...
– Geralmente é assim. Acompanhamos sua vida neste formulário. Agora, são apenas formalidades: questionários “post mortem”, controle de qualidade, feedbacks, nível de satisfação, essas burocracias de sempre...

– Posso reclamar?
– Com certeza!

Ele respirou fundo. E lascou a pergunta entalada na goela há tempos:
– Escuta aqui, seu luminoso: por que me mandaram pra lá? Detesto futebol, Carnaval e novela.

Instalaram em mim manias de justiça, de paz, de amor, de honestidade. Me enfiaram na alma toneladas de indignação e sonhos de um mundo melhor. Daí, me botaram no Brasil. Foi de sacanagem, não foi?

O luminoso rabiscava bolinhas no canto do página, distraído.

– Passei raiva a vida inteira! Quando via gente humilde na fila do posto médico, pensava nos políticos no hospital de luxo para curar dorzinha de barriga. Crianças andando a pé debaixo de chuva para chegar à escola, e deputados renovando a frota com limusines importadas. Burrice, injustiça, safadeza, incompetência, roubalheira por todo lado. E nós, sustentando a galera do poder e seus amiguinhos. Qual é, pô?

O luminoso sorriu. Parou de rabiscar bolinhas.

– Quer saber mesmo? Bem... a proposta é ir melhorando o universo pouco a pouco. Gente como você, brigona, idealista, com essa fome de bola e esse jeitão, mandamos aonde é necessário. Alguém tem que reclamar, se indignar sempre, senão... É uma questão de equilíbrio sutil das massas, compensações energéticas, fatores cósmicos. Na Noruega, por exemplo, você seria inútil.

Ele ouviu a resposta e calou-se. Súbito, como num filme rodado ao contrário, viu sua vida passar inteirinha; momentos bons e os difíceis; as dores e alegrias. Quando o flashback terminou, foi tomado por um sentimento delicioso, de paz. O luminoso olhava-o com simpatia.

Conformado, levantou-se da cadeira:
– Então, missão cumprida? Posso ir pro repouso eterno?
– Xiiii...! – fez o luminoso, coçando a cabeça.
– Qual é?
– Um probleminha. Anos atrás, ao preencher o formulário, você marcou a opção R.I.
– E daí?
– R.I. é “reencarnação imediata”. Volte ao vestiário depressa, devolva essas asas e faça um lanchinho. A próxima remessa para o Brasil já está de saída.

Ele arregalou os olhos, subiu-lhe uma vontade danada de chorar; abriu a boca. Mas era um choro fraquinho, choro de criancinha. Um puxão, uma palmada, e sentiu nos olhos a luz forte da sala de parto.