LAURA MEDIOLI

À espera da vida

Sua corrida é contra a vida, lenta, persistente, devagar, para não se cansar. Além da espera e da esperança, quase nada tem a fazer

Por Laura Medioli
Publicado em 29 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
Hélvio

Perdida em um bairro longínquo de Contagem, finalmente cheguei à casa onde moravam o garoto Vinícius e sua mãe. Vinte anos de idade resguardados num corpo franzino e delicado, marcado pela doença nos rins, que não funcionam, e pelo acesso, onde, três vezes por semana, uma hemodiálise é feita. Três anos na fila de espera por um transplante. Mocidade sem jogar bola, sem poder viajar com amigos, sem andar de bicicleta, sem correr atrás das oportunidades que o mundo oferece aos jovens. Sua corrida é contra a vida, lenta, persistente, devagar, para não se cansar. Além da espera e da esperança, quase nada tem a fazer.

Levo comigo um notebook novo, embrulhado em papel colorido. Dentro dele, um mundo a ser descoberto. Será o companheiro mais constante, inclusive no hospital São José, durante as quatro horas seguidas de tratamento, três vezes na semana. Ali, poderá jogar paciência, FreeCell, contatar amigos no Facebook, ler notícias do planeta inteiro, expandir o seu pequeno mundo.

– Um dia chegará a sua vez! – digo ao me despedir do garoto franzino que, com as mãos trêmulas, acena para mim.

Ontem, foram à minha casa avisar:

– Laurinha! Marião fez transplante, já voltou para casa e está precisando de ajuda.

Uma grata surpresa saber que a minha velha amiga, acometida por doença de Chagas, teve a chance de renascer. Enquanto me dirigia à sua casa, voltava no tempo, quando a conheci. Na época, moradora de um assentamento de terra, debaixo de uma lona preta, ela já exercia sua liderança. Trabalhadora incansável, cozinheira de mão-cheia em residências, restaurantes e uma casa de apoio a soropositivos... Além do trabalho remunerado, o comunitário, sempre à frente nas causas que defendia. O sorriso largo é sua marca registrada. Vive rindo, mesmo diante das adversidades. Nunca perde a esperança. E, quando a doença se agravou, encaminhada pelos médicos, entrou na lista do transplante. Mais de dois anos de espera.

Enquanto Vittorio, meu marido, aguardava por um fígado em São Paulo, Marião aguardava por um coração em BH. Distantes, vivenciando o mesmo drama.

Na porta, sou atendida por Gabriel, o caçula, com nome de anjo e camisa do Cruzeiro. Pede-me para passar álcool nas mãos antes de entrar no quarto da mãe. Marião me sorri como antes. Uma figura essa mulher!, penso, divertida, ao encontrá-la tão bem. Há um mês e meio transplantada, vem me mostrar com orgulho a sua cicatriz, por onde retiraram seus males e introduziram a vida.

Fala-me com admiração e carinho dos médicos que tão bem a acompanharam. Conta das dificuldades de um hospital que vive sua luta diária a favor da vida, da falta de sangue que dificulta cirurgias, dos pobres vindos do interior, sem ter onde ficar, das cadeiras frias e corredores tristes, onde permanecem os acompanhantes, mas fala, acima de tudo, da obstinação, da competência e do imprescindível valor humano que encontrou ali, no Hospital das Clínicas, onde nasceu de novo.

Agora feliz, agradece todos os dias a Deus, aos médicos e enfermeiros e, principalmente, ao doador e seus familiares. Doador que, além da dela, salvou mais três vidas. Também agradece aos doadores de sangue. 

– Eu precisei de muito sangue, sabia? – ela me diz, emocionada. 

Tento fazer com que se cale um pouco. O esforço da fala ainda a cansa. Gabriel me chama para comer o bolo que ele fez. Nos últimos anos, cuidou da mãe como uma mãe cuidaria de um filho. Treze anos apenas e tamanha responsabilidade. Conta-me das noites sem dormir, das madrugadas ligando para o Samu, acompanhando a mãe ao hospital, do feijão com arroz que aprendeu a fazer, dos remédios controlados que não deixa de dar nos horários certos. Olhando para aquele menino, vejo que o anjo não está apenas no nome que carrega.

Despeço-me com um sorriso largo, que nem o da Marião. Nas mãos, levo uma forma gigante com pudim de leite, presente do Gabriel.

E lembro-me, então, daquele garoto carioca que se transferiu para São Paulo e ficou dois anos residindo num hospital, longe da família, à espera de um coração. E que, numa entrevista, solicitado a deixar uma mensagem, com os olhos lacrimejantes, disse:

– Pior que perder uma vida é perder duas.

No último dia 27 foi comemorado o Dia Nacional do Transplante. Sete anos se passaram desde quando escrevi esta crônica. Quis republicá-la porque conheço de perto a angústia e o sofrimento de quem espera por uma nova vida.

Desde o dia em que o Vittorio foi transplantado, acendo uma vela para o seu doador, que, carinhosamente, chamo de “meu amigo”. Agradeço a ele e aos seus familiares por terem dado não apenas ao Vittorio, mas a outras pessoas, a chance de viver.

Minha gratidão será eterna. Hoje, Vittorio, como prefeito de uma grande cidade, sem nenhum tipo de remuneração, dedica seu tempo e seu trabalho empenhado em amenizar os sofrimentos, principalmente daquela população mais carente. E, assim, vai cumprindo o que acredita ser a sua missão, nessa segunda vida que Deus lhe deu.