Memórias

Aquilo que nos resta

Outro dia, uma amiga comentou que as crônicas de que mais gosta são aquelas que escrevo sobre minha infância e juventude

Por Laura Medioli
Publicado em 25 de agosto de 2019 | 04:00
 
 
Editoria de Arte

Outro dia, uma amiga comentou que as crônicas de que mais gosta são aquelas que escrevo sobre minha infância e juventude.
Sendo da mesma geração, é natural que haja essa identificação. 
Presenciamos as mudanças ocorrerem muito rapidamente. Minhas filhas nasceram nos tempos da internet, dos computadores, dos celulares e dos shopping centers...

Eu nasci na época do telefone preto, dos orelhões, dos armazéns e lojinhas de bairro, do disco de vinil, das eletrolas, das turmas de rua, quando ficar de prosa com os amigos na calçada à noite não tinha o menor perigo. E vivíamos ficando, eu e minha turma do bairro Serra, embora eu morasse na Pampulha.

Éramos mais de 20 adolescentes, reunidos quase diariamente numa pequena rua, chamada Luz. Rua onde passamos fases importantes e definitivas para nossa formação. Aprendemos valores que só grandes amizades e experiências compartilhadas podem oferecer. Tínhamos à nossa frente um universo inteiro a ser descoberto juntos.

Os meninos com suas bicicletas de dez marchas, que, no decorrer da juventude, foram trocadas por aquelas motorizadas. Com elas, nos fins de semana, costumavam sair da Serra e parar na minha casa, do outro lado da cidade. Sem capacetes, sem documentos, nada disso era exigido. E, talvez por preguiça de voltar, ficavam por lá mesmo. Minha casa era enorme, com muitos quartos e salas em que meus amigos, abrindo os armários, sabiam onde encontrar colchonetes e cobertores. Sequer existiam chaves, e quem chegasse era sempre bem-vindo.

As turmas se misturavam: a minha com as dos meus irmãos. No almoço, um panelão de estrogonofe e outro de arroz. Um engradado de Coca-Cola e, de sobremesa, duas latas de sorvete Kibon.

O tempo passou, e as bicicletas motorizadas foram trocadas por motocicletas. Nos fins de semana, muitas vezes, o destino era o mesmo. E ninguém reclamava do estrogonofe e da sobremesa de sempre. Nadar, jogar truco ou jogar conversa fora, não importava, o importante era estarmos juntos.

Como de costume, minha mãe recebia a todos de braços abertos. Ocasionalmente, era despertada, já nas primeiras horas da manhã, por mães assustadas, perguntando se os seus filhos tinham dormido lá. Ela se levantava da cama e saía para conferir: no chão, os colchonetes, onde uma dezena de jovens dormiam esparramados.

– Sim, fique tranquila! Seu filho está aqui – dizia às mães aflitas. E voltava a dormir. Não esquentava a cabeça com a turma. Preferia nos ter por perto do que “sabe-se lá onde” e em quais companhias!

Andávamos sempre em grupo. Quando viajávamos, também era em conjunto. Lembro que minha mãe, antes de me autorizar, ligava aos meus melhores amigos, os seus preferidos: “Só deixo a Laurinha ir se você for junto!” Querendo ou não, eles acabavam indo, segundo a cabeça de minha mãe, para me “proteger” dos perigos. E eu me perguntava: que perigos eram aqueles? Excesso de bebidas?

Drogas que nos eram ofertadas? Algum tarado ou mal-intencionado?

Depois das motos, vieram os Opalas rebaixados, as Brasílias e os Passats. Até um Ford Desoto, da década de 50, foi adquirido em conjunto, quando alguns da turma fizeram uma vaquinha para comprá-lo. Furrecão era a maneira carinhosa como chamávamos o veículo, cujas portas, nas curvas, se abriam sozinhas, e, dos bancos encardidos, podíamos ver parte do asfalto, o carro mal tinha piso. E era com essa furreca e outros carros que íamos escondidos aos “pegas do Mineirão”.

Meus pais, dormindo, nem desconfiavam quando nós, junto com os colegas de meus irmãos, saíamos de madrugada para o estádio, onde no estacionamento, do lado de fora, dezenas de carros rebaixados faziam corridas e maluquices.

O negócio era tão conhecido que até carrinho de pipoca tinha no local. Os gramados viravam arquibancadas, repletas de jovens querendo assistir ao “espetáculo” de coragem e ousadia. E quando a polícia chegava para acabar com a farra, era um deus nos acuda! Todos correndo para sair. De vez em quando alguém era preso, o que, felizmente, nunca nos ocorreu.

Deus, naquela época, devia deixar os anjos em alerta máximo. Estressados, os querubins não tinham sossego. Os que protegiam a minha turma deviam viver exaustos. Alguns acidentes, algumas inconsequências e o pensamento permanente de que nada de ruim nos aconteceria. 

Vivi uma adolescência e juventude que soube valorizar as amizades, compartilhar experiências. Os primeiros tragos, o primeiro porre, os primeiros beijos, paixões não correspondidas, a descoberta da sexualidade, os namoros, a confiança, os abraços, os amassos, os desabafos, os risos, as viagens, as maluquices... As festas, os cinemas, os estudos, as mesas dos botequins e do pingue-pongue, as calorosas discussões de futebol, os almoços na minha casa, na casa dos outros. E, de vez em quando, uma tristeza grande ao vermos um amigo partir, quando acreditávamos que jovens eram proibidos de morrer.

Os anos se passaram. Cada um com seu destino. Casados, descasados, a maioria com filhos, alguns já avós. Uns se mudaram: Rio, São Paulo, Estados Unidos... Outros se foram. 

O tempo corrido e as responsabilidades da vida adulta acabaram por nos distanciar. De vez em quando, nos encontramos em algum velório, tristes pela perda recente e saudosos daquele tempo que não volta mais.