Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Carência

Publicado em: Dom, 27/10/19 - 03h00

Já nem se falavam mais, e a menina, do seu canto, sentia que o clima não ia bem. Nervosa, a mãe derrubava coisas: o suco, o açúcar; a colher afogada no feijão. O pai, calado, censurava com o olhar, como a dizer: chega de erros!

Assim! Como se os erros também não coubessem a ele.

A menina pressentia no ar atitudes conflituosas, embora não conseguisse decifrá-las.

Gostaria de contar sobre a professora de inglês, falar do colega novato, do bicho estranhíssimo que vira no jardim. Mas era melhor deixar pra lá.

Ultimamente, ali ninguém a percebia mesmo.

Sempre a mesma coisa: o silêncio entediante, a colher afogada no feijão, a comida que descia forçado.

– Come a verdura, que te faz bem! – às vezes lhe dizia um ou outro.

Comer! Era só disso que falavam à mesa, não entre si, mas para ela. Queria sair gritando, dizendo que detestava aquelas coisas verdes. No entanto, o medo era mais forte, e, calada, enfiava a comida garganta abaixo.

Não via a hora de se levantar, ver o desenho na TV, era o seu momento relax, sem cobranças, sem caras feias e com prolongados silêncios. De vez em quando, era interrompida. Aumentava o volume na tentativa de abafar os gritos que vinham do quarto. Depois, as portas batendo, o pai saindo, e novamente o silêncio, sempre o silêncio.

Até que, um dia, chamaram-na para uma conversa. Quem sabe queriam saber da professora de inglês, do colega meio japonês com sotaque engraçado? Saber do seu mundinho restrito, mas que, para ela, em seus 8 anos de vida, parecia um universo.

Tão logo descobriu que não era bem isso; a questão era outra. Queriam ter uma conversa séria, de pais para filha, como se ela pudesse compreender a extensão do que teria de ouvir:

– O papai vai se mudar! Mas não se preocupe, continuará sempre presente. A mamãe? Vai ficar aqui com você. Você pode até dormir na nossa cama. Vai ser bom dormir na cama com a mamãe, não é mesmo?

E foi assim que a menina, de um dia para o outro, passou para a cama da mãe.

Acordava assustada, o quarto era escuro, e, ainda no travesseiro, o cheiro da colônia do pai.

Achava gostoso aquele cheirinho, lembrava-se de quando se sentava na pia para vê-lo barbear-se. Nem tem tanto tempo assim, mas era uma época em que ele sorria mais, com aquela montanha de creme no rosto. Passava aquilo no seu pescoço, na ponta do seu nariz, e ambos, olhando-se no espelho, morriam de rir. Aí entrava a mãe, com um sorriso tranquilo, penteando o cabelo, passando batom, dizendo “bom dia”.

Hoje, já não acha mais a cama dos pais seu objeto de desejo. Bom mesmo era quando tinha os dois – e ela no meio. Adorava ficar por ali, no quentinho. A cama, agora, é enorme. Se bobear, morre de frio. E ainda tem de aguentar o choro contido da mãe, aqueles soluços infindáveis percorrendo a madrugada.

Compreende que a ausência do pai é a causa de tudo. Sente no íntimo, mais uma vez, resquícios de sua colônia. E, como a mãe, chora baixinho, sem querer se fazer ouvir.

Começa a receber presentes como nunca: uma coleção de bonecas, estojos de maquiagem infantil, o tênis com luzinhas que piscam, como se coisas e objetos pudessem suprir o vazio.

Até que, um dia, sentada na pia, percebe que a mãe voltou a se pentear, ressuscitou o batom, não o clarinho, mas o vermelho, quase roxo. As noites, para ela, tornaram-se mais amenas, sem choros, sem lamentos, sem silêncios.

Passou até a sorrir! Comprou roupas novas e ficava horas no espelho. Nem se importava mais com as verduras no seu prato. Aliás, não se importava com mais nada. Passou a não ter horários, e a cama em que juntas dormiam estava cada vez maior e mais vazia!

E a menina, então, começou a sentir no edredom o perfume da mãe, confundindo-se com a colônia do pai. Fechava os olhos e deixava os pensamentos fluírem. Como se aquelas fragrâncias a levassem a um passado não tão distante, quando ela, deitada entre ambos, sentia-se protegida... mais querida...

Abraçada ao travesseiro, enfim, a menina dorme.