Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Desejo

Publicado em: Dom, 29/12/19 - 04h00

Viam-se através das janelas. Ela, do oitavo andar; ele, do nono. Prédios vizinhos formando uma paisagem maciça naquela cidade de concreto. Não sabiam nomes, origens, gostos. Apenas ocasionalmente seus olhos se encontravam, compartilhando sua solidão.

Primeiro, é ele quem a descobre, quando, ao olhar do parapeito, firma sua vista naquela moça de branco, que, adentrando a pequena sala, liga a TV, desliga. Pega um livro, deita-se no sofá. Lá fora, uma chuva fina. A moça adormece, provavelmente com o livro aberto sobre o peito. E ele, então, de sua janela, em silêncio, lhe deseja boa-noite, o primeiro de uma série.

Com o tempo, acostuma-se à sua presença, aos seus horários. Observa suas vestes brancas. Médica? Dentista?

Os dias passam, e a moça do oitavo andar continua a despertar curiosidades. Ele compra um binóculo, quer conhecê-la melhor. Ao vê-la tão próximo, sente no seu íntimo uma chama de excitação, vergonha por sentir-se intruso, invadindo aquele espaço sem pedir licença.

Assusta-se ao olhar pela primeira vez aquele rosto sereno. Não a imaginava assim, tão frágil, meio que desprotegida.

Na rua, observava atento. Quem sabe a encontraria na padaria, no caixa do supermercado, olhando as mesmas vitrines, desejando os mesmos DVDs...

Hoje, na janela, um vaso de flores, uma orquídea amarela. Ela está feliz, disposta, vestida de cores, num vestido longo e ousado nas fendas. Sem perceber, a despe em pensamento.

Manhã de sábado, a janela permanece trancada. Pensa na orquídea, que precisa de ares, e ele, desesperadamente, precisa vê-la. De repente, a persiana se abre, mostrando junto a ela outro alguém.

Dividem a mesa, um café posto às pressas, conversam, repartem os jornais, se abraçam, se beijam e desaparecem.

Descobre que a moça de branco, incorporando-se a seus anseios, começa a fazer parte de sua rotina. Espera-a nas esquinas, na portaria do prédio, em frente à garagem. Quer alcançá-la em altos voos, nas asas de um sonho que não se sustenta, já que sequer consegue atingi-la em cronometrados passos. É como se, fora da pequena sala, ela se desmaterializasse e existisse somente ali, somente para seus olhos.

Depois... A orquídea esquecida. A TV ligada num canal qualquer, o desalento na face triste. Ambas se exaurindo. Ele quer alertá-la, dizer-lhe que flores, para sobreviver, precisam de água e, mais ainda, que ela precisa reagir, olhar para fora, sentir o frescor da noite. E, quem sabe, ao olhar para o alto, tê-lo oferecendo-lhe alegria, companhia... Seu amor a persegui-la...

Quer chamá-la pelo nome, que há muito descobriu nas páginas de um catálogo. Debruça-se no parapeito, como se suas mãos pudessem alcançá-la e acalentá-la naquela fria noite de solidão.
De repente, ela se levanta, vai à janela. Pela primeira vez, observa a presença daquele que já a conhece tanto. Olham-se em silêncio. Ele, cheio de emoção, lhe acena, e ela retribui sem sorrisos.
É tarde, as luzes se apagam.

Fim de ano. Lá fora, os rumores da rua, a queima de fogos, as festas... Pronto para comemorar com amigos, ao descobrir a tênue luz acesa no oitavo andar, desiste. Sair pra quê? Como se o simples fato de uma mudança de data o obrigasse a ser feliz, comemorar, embebedar-se de champanhe, quando, no íntimo, seu maior desejo é permanecer ali, olhando para aquela janela, ser o primeiro do novo ano a ver aquele rosto querido e, com um sorriso largo, desejar a ela o melhor e o mais feliz de todos os anos.

Crônica publicada originalmente em dezembro de 2016. A colunista está em férias.