LAURA MEDIOLI

Rafinha e Rafão

E, como já previa a filha, o inevitável aconteceu. Ameaça de infarto foi o mínimo sucedido ao pai, que, ao abrir a porta de casa, deu com a filha, Rafaela, e o sujeito, Rafão.

Por Laura Medioli
Publicado em 01 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
Hélvio

Para o desespero da família, saiu de férias para Mauá, no Rio de Janeiro, e simplesmente não voltou. Ficou por lá, respirando o ar puro das montanhas, curtindo a natureza e o novo affaire, um rastafári “Made in Bahia” que, assim feito ela, foi conhecer o lugar e se encantou.

O que era para durar uma semana, no máximo uma quinzena, se estendeu por um mês, dois, três, até a mãe, enlouquecida, dar o ultimato.

– Filha, explica o que está acontecendo... Conta para sua mãe o que é que tem aí que não te deixa voltar. Eu já não sei mais o que dizer a seu pai...

– Calma, mãe! Já falei que estou ótima. Como diria a vó Lenir... amando loucamente!

– Mas quem é o rapaz? Traz ele aqui para conhecermos... Quem sabe assim seu pai sossega um pouco?

– Mãe, eu já disse que o Rafão é um cara ótimo, nos conhecemos, nos apaixonamos, e pronto! Qual o problema?

– Mas, mas...

– Tudo bem, mãe. Vou ver se passamos um tempo aí em Beagá. O meu medo é em relação ao papai... Se ele já está nervoso, pode ser que fique ainda mais.

– Como assim? Mais do que está, é impossível! – disse a mãe desalentada.

E, como já previa a filha, o inevitável aconteceu. Ameaça de infarto foi o mínimo sucedido ao pai, que, ao abrir a porta de casa, deu com a filha, Rafaela, e o sujeito, Rafão. O susto foi tão grande que mal conseguiu abraçá-la, muito menos oferecer as mãos ao novo e inusitado genro.

– Pai, este é o Rafão! – repetiu pelo menos duas vezes, para que ele se desse conta disso, enquanto o rapaz, sem se incomodar, abriu um largo sorriso, entrando na sala.

Quem acudiu foi a mãe, que, olhando assustada para a filha, pôde enfim compreender sua antecipada preocupação. A filha pelo jeito estava ótima, com aqueles vestidinhos de sempre, penduricalhos mil e cabelos soltos. O problema era o Rafão, com seus milhões de tranças, ou fosse lá o que era aquilo no seu cabelo (se é que aquilo era cabelo), meia dúzia de brincos, colares, camisetinha surrada, chinelinho básico, enfim, um pesadelo vivo para o pai da moça, que, olhando a figura a sua frente, se perguntava onde é que tinha errado na criação da filha.

Lembrou-se de que no começo tudo nela era normal: menina comportada, com suas vaidades juvenis, gostando de vestir-se bem, perfumes florais, cheia de caprichos – até mais do que deveria. De repente, não se sabe como nem por quê, sua vida deu um giro de 180 graus. Entrou na faculdade de sociologia, engraçou-se com um anarquista, militante do PSTU, e, fazendo estágio em um acampamento do MST, acabou trocando o anarquista por um gaúcho sem-terra, mas cheio de charme, até acabar presa por se meter em confusão. Enfim, após experiências diversas, voltou para casa ciente de que deveria mudar o mundo. Só que, antes de mudar o mundo, resolveu ir para Mauá espairecer a cabeça. E, aí, não deu outra. Passeando pelas ruelas da cidade, deu com o Rafão, sentado no chão da pracinha, vendendo brincos e bugigangas com aquele sorriso largo que tão logo a encantou.

– Ei, quanto custa esse trem aqui?

– Tu é mineira?

E foi assim, após o primeiro contato, que a menina cismou que o baiano seria a tampa do seu balaio. Papo vai, papo vem, tornaram-se amigos, ficantes, namorados, juntados e agora, na presença dos pais da moça, o rapaz decide “legalizar” a união.

– CASAR??? – grita o pai horrorizado.

– Na verdade, isso para nós não tem a menor importância. Falei em casar só para tranquilizar, senão fica como está, que está de bom tamanho – disse o quase noivo com cara de apaixonado, enquanto a quase noiva, emocionadíssima, já que não esperava por essa, entra na conversa.

Decidem que, por enquanto, é cedo para decisões do tipo; recém-formada, 22 anos, a vida pela frente, não valeria a pena precipitar-se; além do mais, não seria uma aliança no dedo que os tornaria unidos.

Voltaram para Mauá, onde ela, dando aulas numa escola, e ele, vendendo seus badulaques, mudaram-se para morro acima, um pontinho branco com fumacinha no meio da mata, em que, envolvidos pela natureza, vivem sua história. Sem luz elétrica, a “geladeira” é um riacho de água gelada que passa rente à cozinha, onde deixam embalados os produtos perecíveis. Macrobióticos radicais, cultivam alguns alimentos “yins”, alternados com outros “yangs”, além de raízes e ervas medicinais. Tudo assim, muito natural.

O tempo passou. Os pais, acostumados com a situação, já não mais se importavam; pelo contrário, descobriram no genro uma pessoa íntegra, correta e amorosa. Tudo bem que era um tanto quanto fora do padrão, na verdade nada daquilo que tinham imaginado para a filha, mas o importante é que ela estava feliz, realizada e, pela primeira vez, sossegada no seu canto.

Noite fria. Ela, sentindo-se indisposta com um enjoo repentino, aconchega-se a ele.

– Rafão!

– Que foi, Rafinha?

– Nada! Só estava pensando...

– O quê?

– Na certeza que tive naquele dia... No dia em que nos conhecemos...

– Quê isso que tu tá falando aí, menina?

– Nada! – e com um sorrisinho tranquilo, acariciava o ventre, na certeza de que realmente encontrou a tampa do seu balaio.