Laura Medioli

LAURA MEDIOLI escreve aos sábados. laura@otempo.com.br

Um conturbado, mas franciscano Natal

Publicado em: Sáb, 23/12/23 - 03h00

Natal: oportunidade única de a família se reunir, entre filhos, noras, genros, netos e sobrinhos. O filho mais velho viria do interior; o segundo, de Londres, onde há alguns anos residia. Solteirão e meio maluco, tinha o apelido de Charles, provavelmente devido à sua “origem britânica”. A terceira, complicaaaada até não poder mais: encrenqueira e de mal com a vida. Resumindo: uma chata! A quarta, decidindo se casar com Jesus, virou irmã carmelita. A quinta, Francisca, da pá virada, como diriam suas primas. Tudo bem que, para falar da Francisca, não só as primas gastavam seu tempo, mas metade da cidade onde ela cursava, aos trancos e barrancos, a faculdade de agronomia.  

– Só se for para plantar maconha – diziam as más línguas. 

Mas a Francis, como gostava de ser chamada, não estava absolutamente nem aí para o que dissessem ou deixassem de dizer a seu respeito, era autêntica, na dela. Tinha fama de pervertida, mas, no fundo, era uma natureba, com mania de Hare Krishna, xamãs, discos voadores e coisas do gênero. Só porque, de vez em quando, saía pelada na rua em protesto por alguma coisa pegou fama de destrambelhada. Na família, apenas o irmão Charles a compreendia e a apoiava de forma integral. 

Por fim, a caçulinha Rafaela, que, com seus 23 anos, de “inha” já não tinha mais nada, muito menos de “santinha”, como gostava de se referir a ela sua mãe, essa pobre mulher que pariu seis filhos, fora os três abortos naturais. Uma vida de gestações e rebentos, em que nem sequer teve tempo de pensar em enjoos, desejos, dietas e vida profissional. Mãe em tempo integral. 

Enfim, Natal, quando, mais uma vez, se reuniriam ao som de gritos, risos e rezas – coisa de que a mãe e a irmã carmelita faziam questão e os irmãos, embora mais desligados, levavam também a sério.

O mais querido pela criançada era o Charles, que, há vários Natais, trazia de Londres, enrolado numa fita dourada, um pôster gigante da rainha. Gostava de desembrulhar aquilo e ler para a meninada a mensagem escrita em letras garrafais: “Aos meus primos queridos, com um grande abraço da Elizabeth”. Mostrava para as crianças, passando de mão em mão para, depois, com toda pompa e circunstância, guardá-lo de volta, antes contando histórias curiosas sobre a “prima” importante de roupas esquisitas. Até que um dia ela morreu, e ele, sem muitas opções, trouxe um pôster do xará, o sem-gracíssimo príncipe Charles, que, pelo visto, não fez o menor sucesso. 

Também a Francis, sob o olhar reprovador da irmã carmelita, dava o maior ibope. Adorava contar casos de ETs invasores, para o espanto da meninada.

Durante o almoço, discussões eram inevitáveis, afinal, como colocar na mesma mesa personalidades tão distintas, que nem mesmo pareciam vir da mesma matriz? O mais velho, com aquele seu ar bonachão, nada questionava; ao contrário da Francis, que questionava tudo: desde o peru morto até a árvore europeizada e, claro, política, com todo o repertório de frases prontas: “Racista! Fascista! Gordofóbico, homofóbico, perufóbico” etc., etc.

– Como as pessoas têm coragem de degolar e comer um peru pra comemorar um nascimento? Qual a lógica disso? Será que Jesus aprovaria essa crueldade? 

E a plateia, indiferente, com exceção da carmelita: 

– Não ponha Jesus nessa história, pelo amor de Deus, Francis!

E a desmancha: 

– Ai, gente! Que saco! Vamos parar com essa discussão boba, que já estou esfomeada. Mãe, me passa o peru!

– Gula também é pecado – voltava a carmelita.

Continuaram suas discussões sem pé nem cabeça até serem interrompidos por um grito vindo da cozinha. O cachorro tinha comido a sobremesa, uma fantástica torta de biscoito champanhe com leite Ninho. De repente, outro grito, desta vez vindo do quintal, onde os netos de 4 e 5 anos lavaram, no tanque, um casal de pintos coloridos, presente do primogênito, para, depois, pendurá-los no varal. O problema é que morreram sob o olhar atônito e assustado dos dois meninos.

– Não acredito que deram pinto de presente para as crianças – gritava a Francis indignada.

– E cor-de-rosa ainda por cima! – completava Charles, horrorizado! 

– Qual o problema? – perguntou o primogênito, tentando se defender da tamanha falta de noção de seu presente. 

Até entrar a “encrenca” resmungando: 

– Credo! Como é que vou encarar uma coxa de peru com essas perninhas penduradas no varal? 

Pronto, acabou o clima. Voltaram à mesa em silêncio, ora interrompido pelo choro compulsivo dos exterminadores de pinto. 

Após o almoço, seguiram para a capela, uma pequena gruta que existia no fundo do quintal desde o tempo em que começaram a se entender por gente. A reza foi puxada pela mãe, seguida pela carmelita. Reunidos, cantaram juntos a oração de são Francisco e compreenderam que, no mundo, apesar das pequenas e grandes desavenças, o amor estava acima de tudo. E que, naquele momento, se fazia ainda mais presente no seio daquela grande família.


Desejo aos meus leitores um ótimo Natal e um 2024 mais leve, com menos brigas e mais risos, muita saúde e melhor qualidade de vida, amigos e conversas divertidas, menos violência e mais paz! 

A partir do próximo mês estarei de férias. Obrigada.