LAURA MEDIOLI

Vila Paulo do Atlético

'Numeração ali era uma coisa meio complicada, só se inventássemos um número qualquer, já que mato não era considerado endereço.'

Por Laura Medioli
Publicado em 27 de março de 2021 | 03:00
 
 
Acir Galvão/ O Tempo

No último dia 25, o Atlético completou 113 anos. Um bocado deles contou com minha presença ativa nas arquibancadas do Mineirão e do Independência. Numa família em que eu era a única menina e a caçula, nunca entendi por que, diferentemente dos meus irmãos, fui gostar de futebol. Com o pai americano, bem se sabe que não foi daí o meu gosto pela coisa. Dessa época, guardo boas e divertidas lembranças. 
 
Quando nos mudamos para a Pampulha, fomos morar numa casa situada numa estrada estreita e isolada, de nome Engenho Nogueira, que depois, melhorada e ampliada, virou a avenida Catalão. 
 
Vizinhos eram apenas dois: o Lar dos Meninos e a fazenda onde trabalhava seu Alicanoa. O resto era mato. Para facilitar a identificação de nosso inusitado endereço, meu pai teve a ideia de colocar no gramado uma placa grande e visível com a inscrição “Vila Paulo”, em homenagem ao meu avô Paulo, já falecido na época. Numeração ali era uma coisa meio complicada, só se inventássemos um número qualquer, já que mato não era considerado endereço. 
 
Essa placa permaneceu intacta durante muitos e muitos anos, e, até hoje, algumas pessoas, que não faço ideia de quem seja, perguntam sobre a Vila Paulo. O endereço passou a ser realmente conhecido depois que o Atlético, em mil novecentos e alguma coisa, quando já existiam a avenida Catalão, o Mineirão e o início do bairro Ouro Preto, alugou uma casa próxima à nossa para servir de concentração. Não sei que confusão fez o Kafunga – o mais famoso comentarista esportivo da época –, que, sem mais nem menos, passou a falar na rádio Itatiaia que o novo endereço do Atlético era a Vila Paulo. Talvez por acreditar que Vila Paulo fosse o nome da região, ou então ele saiu com essa para dar certo status ao time pelo qual tão ardorosamente torcia, já que o local era muito bonito e se situava no caminho do Mineirão. 
 
Depois disso, passamos a enfrentar a paixão de atleticanos fanáticos e a ira de cruzeirenses. Em dia de jogo, era bem divertido: torcedores alvinegros nos saudavam com gritos eufóricos de “Galoooooo!”, enquanto cruzeirenses, de bom grado e boca cheia, nos saudavam com um gutural “Filhos da p...!”. 
 
E eu, meio maluca, ficava na cerca atirando mangas – minha casa ficava no alto. 
 
– Filhos da p... é a PQP! 
 
Deus do céu! Se meu pai me visse! 
 
Essa mania de ficar na cerca durou um bom tempo. Eu vestia minha camisa do Atlético e levava escondida minha munição de mangas. Eu e uma cozinheira enlouquecida que trabalhava conosco. Na verdade, não as atirava sem motivos, só quando era xingada ou levava alguma pedrada. Aí, sim, lá ia manga! 
 
Minha mãe, ao ler esta crônica, vai levar um susto, até porque, finalmente, vai descobrir o mistério da vidraça quebrada. Na época fiquei receosa de dizer que quem quebrou o vidro da sala não foi o cachorro, mas uma pedra atirada com fúria por algum torcedor celeste. Depois disso, criei juízo. Abandonei meu campo de batalha. 
 
Ainda bem que a doidice acabou. 
 
O fato é que hoje, mais de 40 anos depois, minha antiga casa ainda é lembrada por muitos como a “concentração do Atlético”, o que na realidade nunca foi. Foi, sim, e isso eu garanto, a casa de uma maluca pelo Atlético. 
 
 
E fico aqui rindo sozinha, imaginando aquela mocinha doida que atirava mangas, pensando que um dia, já adulta, torceria também pelo Cruzeiro, não o do futebol, mas o do vôlei: o campeão de tudo, Sada Cruzeiro. E que, num ginásio esportivo ou no estádio Independência, cantaria o hino dos dois a plenos pulmões. Sem mangas voadoras, sem palavrões e, principalmente, sem fanatismo. Tudo bem; mais ou menos sem fanatismo.