Um dia qualquer, na hora do almoço. Mãe e filhos se sentam à mesa para a refeição, quando o mais novo começa a papear, enrolando para não comer.
– Outro dia eu vi o Bidu cavando buraco no quintal, aí eu fiquei brincando que tinha achado uma nova raça de cachorro, que era o cachorro-escavadeira. Então dei pra ele o nome de “cachorro-tatu”, porque ele tava igual um tatu, fazendo tanto buraco.
– Entendi.
– Mãe, cachorro tem bumbum? Eu acho que ele não tem bumbum, porque não tem essas duas bolas. Como que chamam as bolas, mãe?
– Nádegas.
– Nádegas? Que nome científico.
– Científica é a calculadora – interveio o mais velho.
– Mas calculadora é de matemática, e não de ciências. Mas então cachorro não tem “búmbigas”, né, mãe?
– Nádegas. Agora come, depois a gente conversa.
– Ah é, falei “mal errado”. Mas não é medusa, não, né?
– Medusa?
– O peixe.
– Ah, não é merluza, não, é tilápia.
– Mãe, com que você sonhou hoje?
– Eu não lembro.
– Sabe o que eu sonhei? Sonhei que nada, nada, nada existia, nem eu existia.
– Mas, se nem você existia, como você sabia que estava sonhando que nada existia? – perguntou o irmão.
– Na verdade é porque eu não sonhei com nada, por isso que eu falei que sonhei que nada existia.
– Esse papo tá ficando meio confuso. Vamos continuar a comer, gente?
– Mas, falando em sonho, mãe, você já reparou que às vezes, de noite, a lua fica meio morceguenta?
– O que é isso?
– Quando é lua cheia, e aparece vampiro, lobisomem, Jack da Lanterna, fantasma, essas coisas. Aí é lua morceguenta, igual nas histórias de terror.
– Tá bom, tá bom, já entendi. Olha que a comida já deve ter esfriado de tanto você falar. Agora come tudo, o arroz, a salada, a batata e o filé de medusa... quer dizer, de tilápia.
Crônica inspirada no conto “Come, meu filho”, de Clarice Lispector.