Marcelo Szuster

CEO da empresa DTi

A estratégia da transformação digital: skin in the game

Publicado em: Sáb, 12/09/20 - 08h10

Um CEO, angustiado, lê, escuta e é inundado com notícias sobre as mudanças exponenciais, as startups, a inteligência artificial, a singularidade. Como lidar com isso? A resposta que lhes é dada é simples: façam a Transformação Digital.

Ah, o pensamento mágico. Um mecanismo impregnado no cérebro, que nos faz pensar que um problema complexo será resolvido, assim, quase que por mágica. Então o CEO pensa: já tenho um caminho para sanar minha angústia – a Transformação Digital.

Chama o CIO e diz: que se faça e que se cumpra!

Agora é o CIO que está angustiado. A pressão sobre ele nunca esteve tão grande. É dele a responsabilidade de promover uma transformação definidora para o futuro e prosperidade da organização.

Mas o que é exatamente a transformação digital?

O CIO percebe que ela é muito mais do que a adoção de novas tecnologias. Ela envolve uma reestruturação completa da empresa, uma nova forma de pensar, um novo mindset. A organização, por completo, deve tirar proveito dos novos ativos digitais, deve ser ágil, deve atuar com foco total em seus clientes e criar novos modelos de negócio.

Ele percebe então que a transformação não é abstração, é ação. Ação e aprendizado. Ação e aprendizado, encarando a realidade.

E como ter aprendizado sem colocar a pele em jogo. Ou como diria Nassim Taleb, como aprender sem possibilidade de sofrer danos pelos riscos nos quais se está incorrendo? Sem skin in the game?

Mas de qual jogo que estamos falando?

Estamos falando do jogo de entender rápido, muito rápido, como as tecnologias e possibilidades mudam o modelo de negócios da organização. E esse aprendizado rápido exige apostas, exige priorização, exige simplificação, exige erro.

Mas esse jogo tem que ser jogado por todos, não apenas pela TI. É um jogo coletivo, em que negócio e TI atuam juntos, correm riscos juntos e aprendem juntos.

Parece óbvio, pois falamos de organizações exponenciais, invejamos empresas como a Netflix. E o que observamos: negócios com estruturas tradicionais, que declaram estar fazendo a transformação digital, mas terceirizam esta transformação para TI, esperando resultados milagrosos e se queixando quando eles não acontecem ou demoram.

Toda pele da organização deve estar em jogo

Mas por que toda a pele da organização não estaria em jogo se uma das decisões estratégicas mais importantes do CEO – senão a mais importante – é justamente realizar a transformação digital?

A resposta: má estratégia!

Nas palavras de Richard Rumelt, no livro “Good Strategy Bad Stratey: The Difference and Why it Matters” (em livre tradução minha):

“Infelizmente, a boa estratégia é a exceção, não a regra. E o problema está aumentando. Mais e mais líderes organizacionais dizem que eles tem uma estratégia, mas não tem. Ao invés disso, eles adotam o que eu chamo má estratégia. A má estratégia tende a ignorar detalhes incômodos como, por exemplo, problemas. Ela ignora o poder da escolha e do foco, tentando ao invés acomodar uma grande quantidade de demandas e interesses conflitantes. Como um quarterback cujo único conselho aos seus colegas de time é ‘vamos vencer’, a má estratégia cobre sua falha em guiar abraçando a linguagem de objetivos amplos, ambição, visão e valores. Cada um desses elementos é, claro, uma importante parte da vida humana. Mas, por si próprios, eles não são substitutos para o duro trabalho da estratégia”.

E é isso que ocorre na maior parte das organizações: a Transformação Digital é a estratégia, mas ela é apenas inspiracional. É  apenas uma ambição, terceirizada para TI. Não se encara a dura realidade das escolhas, das mudanças que devem ser realizadas para criar uma estrutura coesa e coerente que possa, de fato, realizar a  transformação digital.

Iniciativas de longo prazo são conduzidas como projetos de curto prazo. Recursos não são priorizados, decisões não são descentralizadas, equipes não tem autonomia, o negócio não aceita simplificações, a criatividade é inibida.

O mais notável disso é a incoerência, pois se a própria organização decidiu que a Transformação Digital é chave para sua prosperidade, como acreditar que isso será uma mudança sem traumas, simples, realizada sem grande esforço? Como acreditar que a mesma cultura e a mesma estrutura serão compatíveis com uma era totalmente diferente?

Mas, em havendo coerência, como começar?

A melhor forma de começar é partir de um dos princípios fundamentais da própria transformação digital: fazer experimentos, partir de uma estrutura mais simples e evoluir.

Defina um problema autocontido a ser resolvido com alguma tecnologia digital e crie uma nova estrutura para cuidar desse problema.

Essa estrutura deve ser multidisciplinar, envolvendo todos perfis necessários para que o fluxo – princípio fundamental da cultua lean ocorra. Além disso, ela deve ser autônoma, com grande capacidade de decisão. Deve ser orientada por objetivos de negócio a serem cumpridos, e não funcionalidades e escopo a serem entregues.

Essa estrutura será uma espécie de fractal do que a própria empresa se tornará. A empresa estará toda voltada, sim, para transformação digital, mas essa é a estratégia! E de qualquer ângulo que se olhe, o que se observará é uma estrutura sempre voltada para geração de valor, autônoma, rápida!

Pense nesse primeiro time como uma semente de transformação digital. Seus resultados serão tão mais rápidos e efetivos do que os trazidos pelas estruturas tradicionais que será impossível resistir à adoção de mais times nessa nova estrutura. Plante mais algumas sementes dessas e a transformação digital passará a acontecer – de verdade!

A outra forma de realizar a transformação digital é simplesmente acreditar no pensamento mágico.

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