Marcus Pestana

O Natal, seu espírito e suas contradições

Oportunidade de reafirmar a solidariedade humana

Por Marcus Pestana
Publicado em 23 de dezembro de 2023 | 07:00
 
 
Leia artigo de Marcus Pestana sobre o Natal, os valores que ele representa e a reaproximação entre os seres humanos Ilustração O TEMPO

O poeta das insignificâncias, as do mundo e as nossas, o mato-grossense Manoel de Barros, alinhavou seu “Poema de Natal”, que diz assim:

Meu avô hoje ganhou de presente um olhar de pássaro/Acho que ele vai usar esse olhar para fazer suas artes/O mundo para ele anda muito cansado/Ele quer mudar o jeito das coisas do mundo/Por exemplo ele vai dar primavera aos vermes/O homem não vai mais fabricar armas de fogo/Só vai ter mesmo rio, árvores, o sol, bichos, pedras/ Ele vai desenhar a sua voz nas pedras/Os grilos vão se abrir no meio da noite com enormes lírios/Todo mundo vai gostar mesmo de obedecer as falas das crianças/Do que as ordens gramaticais/Os sapos vão andar de bicicleta/Depois vamos assistir ao nascimento de Deus/Será Natal/E todos vamos adotar as boas falas do filho de Deus/Amar o próximo como a nós mesmos/Então o mundo será renovado”.

Isso traduz a essência e o verdadeiro sentido do que deveríamos vivenciar na noite de amanhã. Mas o mercado é voraz. A Amazon estará operando com sua capacidade máxima. Todos os marketplaces estarão abarrotados de pedidos. Os shoppings, lotados. A casa de Noel, no lugar da manjedoura.

O comércio, mais que preces. Não que a troca de presentes não possa significar um gesto de amor. Mas um olhar, ainda que rápido, pelo mundo e pelo Brasil nos revela o quanto seria importante focar o pensamento em palavras simples de falar, tais como paz, solidariedade, esperança, amor, justiça, liberdade, tolerância, respeito.

Até nos esquecemos da guerra da Ucrânia e seus efeitos devastadores e desumanos. As cenas da Ucrânia foram substituídas pelas terríveis imagens do selvagem ataque terrorista do Hamas contra Israel e a implacável resposta do Estado judeu. Certamente o espírito do Natal esteve ausente em cada uma das mortes de homens, mulheres e crianças inocentes ocorridas nesses e em outros conflitos armados mundo afora.

Também o espírito de Cristo não orienta a insensata caminhada do planeta para a insustentabilidade ambiental, com ameaças que, se já assombram hoje, povoam de incertezas o horizonte da humanidade. O inédito calor enfrentado em todo o globo, com secas e tempestades severas, denunciam o esgotamento do padrão de desenvolvimento que perseguimos até aqui.

Outros valores e atitudes que encarnam a essência do Natal são a tolerância, a capacidade de diálogo, o respeito recíproco, que são o inverso do ambiente vivido no mundo da política contemporânea, capitaneada por redes sociais intolerantes, notícias mentirosas transformadas em convicção, bolhas fechadas dogmaticamente atuando contra todos os supostos inimigos e uma polarização ideológica radical na Argentina, no Brasil, nos EUA, entre outros países.

Infelizmente, a intolerância política e ideológica não envolve apenas as lideranças políticas, invadiu o cotidiano da população, a vida familiar e entre amigos, os hábitos de consumo e convivência, como mostra o livro “Biografia do Abismo”, de Felipe Nunes e Thomas Traumann.

A pandemia nos fez mais solidários. Vamos nos inspirar em seu legado. Num país onde crianças nas escolas não aprendem e metade dos jovens pobres nem estuda, nem trabalha, nem procura emprego, entre tantas outras mazelas sociais; mais do que nunca, vamos fazer do Natal a reafirmação da solidariedade humana, da esperança e do amor ao próximo.