Observatorio das Americas

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Vinte anos de política externa ideológica

Publicado em: Qua, 15/09/21 - 03h00

"O propósito dos EUA deve ser orientar o mundo para longe de um futuro multipolar vindouro em direção a um novo arranjo – um mundo unipolar. . . (onde) o avanço da democracia deve se tornar a pedra de toque de uma nova política externa ideológica” (Krauthammer, 1989).

Em outubro de 2004, mais de 850 scholars de relações internacionais nos EUA assinaram um manifesto criticando a política externa do governo Bush Jr., as guerras do Afeganistão e do Iraque. Entre os signatários, ao menos 20 ex-presidentes da American Political Science Association (APSA) e da International Studies Association (ISA). Muitos pesquisadores acusaram o Executivo de colocar em risco a segurança nacional e global ao buscar associar a política externa a fatores morais que levaram a enormes erros políticos. A necessária demanda por uma resposta contraterrorista vigorosa veio junto a uma cruzada anti-islâmica e ideológica da Casa Branca.

Apesar do quase consenso acadêmico, não houve mudança de orientação da política externa ao longo do período. Ao contrário, o idealismo/moralismo de sentido religioso rompeu o governo republicano e manteve sua agenda com Obama, na política de mudança de regime, como na Primavera Árabe. Os resultados são decepcionantes e eram esperados.

O que levou a esse quadro, e quais são as consequências, aos 20 anos do 11 de Setembro?

A ausência de tração da comunidade acadêmica na formulação de política externa deve-se à expansão de três forças – o pródigo crescimento dos think tanks conservadores, o apoio de parte do cristianismo de direita nos EUA e a ascensão de uma geração antiliberal isolacionista. Think tanks como o American Enterprise Institute (AEI) e a Heritage Foundation se tornaram os quartéis-generais da causa neoconservadora e da doutrina Bush. O apoio religioso foi erigido nos governos de Reagan e Bush Sr., mas consolidou-se pelas mãos de Karl Rove e Ralph Reed, conhecido, à época, como braço direito de Deus. Rove, assessor de Bush Jr., tornou-se famoso pela estratégia dos 51%, da ampla polarização política e da lógica de mínimas maiorias para governar. Rove gerou o elo entre os movimentos conservadores cristãos e a Casa Branca, em eventos em que a pauta era a guerra do Iraque. Quanto aos novos isolacionistas, Bush Jr. aproveitou-se da geração que defendia unilateralismo, estabilidade do mundo unipolar e aumento de gastos militares. Em alegoria, agiam em defesa da liberdade e da democracia, mas exclusivamente em combate ao islamismo, em guerras preventivas.

As tradições da política externa dos EUA foram negadas pela ideologização do Departamento de Estado. O isolacionismo tradicional, o liberalismo, o realismo de Kissinger estavam fora do menu. O instrumento de ação dessa política não era mais a diplomacia, mas as Forças Armadas e as agências de inteligência. As doutrinas de emprego mesclavam forças convencionais e especiais, técnicas contraterroristas, uso de drones, ações encobertas e campanhas para asfixiar o financiamento das redes terroristas.

A transição do governo republicano alterou as preferências, mas não suavizou a ideologia, no centro da formulação. Obama foi incapaz de produzir uma política externa progressista em defesa do interesse nacional. Optou pela diplomacia da mudança de regime, derramando ideologia no Oriente Médio, Norte da África e Península Arábica. Ao promover a democracia em sociedades não liberais, consumou a instabilidade e ensejou novos e violentos regimes, como em Egito, Líbia, Somália e Síria. Trump, apesar de um bom diagnóstico inicial, não construiu uma doutrina própria, escorando-se no jacksonianismo populista/isolacionista.

As promessas não atendidas pela política externa dos EUA decorrem da estratégia de busca pela hegemonia liberal, que sacrificou os interesses por segurança e manutenção da primazia pela engenharia social de um novo excepcionalismo. A armadilha ideológica não trouxe problemas apenas para os EUA. Além de insegura, a ordem global decorrente é instável e impermeável à democracia e à liberdade. Os limites das guerras por escolha ideológica indicam que a prudência e a diplomacia terão vida longa, associadas ao equilíbrio de poder.

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