Otavio Grossi

Mestre em psicologia, filósofo e pesquisador

As duas metades de nós mesmos

Publicado em: Seg, 18/10/21 - 03h00

Recebi um convite para atuar como mentor e terapeuta em um dos casos mais lindos da minha carreira como ouvinte de dores das pessoas. Ao lado da psicóloga clínica, psicanalista e advogada Noemi Gelape, que me deu a honra de escrever a abertura em meu livro “Conquistas Autênticas” (Ed. Cândido, 2021), passei uma tarde ouvindo, aprendendo e compartilhando vivências com uma transgênera. Nunca tive uma oportunidade de contribuir com minha visão de psicopedagogo clínico e mentor em um caso tão denso e cheio de vida como este. Ela, trans e autista, vive seus desafios e enfrenta seus fantasmas. 

O termo “transgênero” ou “trans” se refere a uma pessoa cuja identidade de gênero – o sentimento psicologicamente arraigado de ser um homem, uma mulher ou nenhuma das duas categorias – não corresponde à de seu sexo de nascimento.

Segundo um estudo importante nos Estados Unidos, 0,7% da população desse país se define como transgênero. Na Índia, trata-se de meio milhão de pessoas, segundo o censo de 2014. O transgênero inclui as pessoas que foram operadas para redefinir seu sexo, assim como as que só receberam um tratamento hormonal. Mas ser trans não implica necessariamente ter recebido um tratamento de tipo algum. 

A OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou a transexualidade da lista de doenças mentais na nova versão da Classificação Internacional de Doenças, a CID-11. Os transgêneros vivem condições diferentes pelo mundo. São vítimas de violenta repressão, mas também conseguiram conquistar direitos em muitos países. Segundo a OMS, há claras evidências científicas de que não se trata de doença mental. 

Ouvimos nesta sessão o impacto de relações intensas de vida e de dor não de um doente, mas de um vivente. Vida, pois é sempre uma busca pela identidade de si mesmo. Vida, pois são esforços para conviver em uma sociedade que se diz includente, mas distancia, vulgariza e discrimina de formas perversas. De dor, pois enfrenta seus vazios, suas faltas e neste caso, com autismo. Ele antes Pedro, agora, Marta – nomes fictícios, mas não sem significados bíblicos, que marcam suas buscas e vitórias. Ele, Pedro, soube permanecer de pé no barco da vida, e, hoje, ela, Marta, não ficou só na preocupação do fazer, mas voltou-se ao essencial: ouvir a vida que pulsava dentro dela. Era e é, agora, uma mulher linda, altiva e empenhada no corajoso enfrentamento da construção de si mesma. 

Dois pontos partilho com você, leitor e leitora, que nos emocionaram muito. O primeiro é que temos uma mente muito binária: ou é isto, ou é aquilo. Buscamos os padrões para nos encaixar em modelos impostos. Esquecemo-nos de olhar nossa vida, nossos quereres, nossos apelos internos, para ficar e reafirmar padrões machistas, autoritários e egocêntricos. Ela nos falou das dores de ter que permanecer nos padrões e da libertação que foi enfrentá-los, não sem medo. O segundo é que nada substitui o papel de um pai e uma mãe na elaboração da nossa identidade. Ela tem um pai digno, respeitoso e amoroso. “Busque o seu melhor, filha! Eu agora entendo tudo!” 

Que possamos aprender com os momentos desafiadores que passamos em nosso país. A necessidade de posição, não partidarismo. A busca pelo diálogo e pela negociação, não de discursos de ódio e imposição. O imperativo de vivermos no real, não no imaginário e em discursos falsos que desprezam os outros ou a realidade.

Que o clamor da organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW), que denuncia que em 80 países as relações homossexuais ou a promoção dos direitos das pessoas LGBT são condenados, às vezes com flagelação ou até com a pena de morte, possa mostrar as necessárias convivências com as duas partes de nós mesmos. 

Sem uma postura binária, mas uma escuta respeitosa e atenta do nosso eu masculino e do nosso eu feminino. Mesmo sem sermos transgêneros, aprendemos com eles que é no equilíbrio destas forças que seremos mais seres humanos evoluídos. Boas escolhas! 

Otávio Grossi é filosofo, mestre em psicologia, psicopedagogo de autistas. Mentor de empresários. Escritor do livro “Conquistas Autênticas”, da editora Cândido. É colunista do jornal O TEMPO e participante do programa Interessa, às segundas-feiras, na rádio Super 91,7 FM. 

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