PAULO PAIVA

Até tu, ema?

O presidente Jair Bolsonaro colocou na cabeça que nada poderá detê-lo na busca do segundo mandato

Por Da Redação
Publicado em 14 de agosto de 2020 | 03:00
 
 

Eventos extraordinários, como desastres naturais, acidentes ambientais e pandemias, causam destruição, mortes e comoção. Ninguém fica imune a seus efeitos. As reações são diversas; no entanto, o comportamento das pessoas é ou de solidariedade e compaixão, ou de individualismo e egoísmo.

Nessa crise da Covid-19, no seio da sociedade civil, são inúmeros os exemplos de solidariedade e compaixão, quer de pessoas que tomam iniciativas individuais distribuindo alimentos e palavras de conforto para minorar a dor e as agruras da doença e da fome, quer coletivamente em inúmeras ações de entidades e grupos de pessoas que socorrem vítimas e seus familiares e fazem doações para hospitais.

Entre os políticos, prevalece o individualismo e o egoísmo dos que tentam obter dividendos e impor responsabilidades a seus adversários. A culpa sempre é do outro. Após a improvável vitória de 2018, o presidente Bolsonaro colocou na cabeça que nada poderá detê-lo na busca do segundo mandato. Com seu egoísmo, tudo que pode lhe parecer empecilho no seu caminho deve ser destruído. E, assim, enfrenta a pandemia como uma inimiga de seu projeto.

Começou por desdenhar a doença, classificando-a como uma “gripezinha”. Nesse nefasto dia, ao chegar em casa na penumbra do entardecer, vê no meio do jardim do palácio uma ema, que, repetindo o sinistro corvo do poema de Allan Poe, o encara e grunhe: “nunca mais!”.
Fruto de sua prepotência autoritária desconhece a competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios para cuidarem da saúde (art. 23, inciso II da Constituição Federal) – reafirmada, aliás, pelo STF – e culpa os governadores e os prefeitos das grandes cidades pelas mortes por Covid-19 e pela crise da economia. Assim, omitindo-se, lava suas mãos, não usando sua autoridade para coordenar ações comuns e solidárias para proteger a população. Novamente, à noite ouve o grito que lhe parece vir do além a perturbá-lo: “nunca mais”.

Aventou a hipótese de intervir no STF e substituir os ministros por militares, segundo divulgou Mônica Gugliano na revista “Piauí”. Foi convencido a não ir tão longe, e coube ao general Heleno o ônus de assinar carta alertando para a gravidade de possível apreensão do celular presidencial. No início da noite do dia 22 de maio, quando chega ao palácio, ouve pasmo esse raro pássaro falar: “nunca mais!”.

A ideia fixa do presidente o fez lançar sua bala de prata, a cloroquina. Mudou ministros, tomou e divulgou o inútil medicamento. Ao exibi-lo eufórico para a ema, recebe de volta um ataque e a mórbida mensagem: “nunca mais”.

Na noite de sábado, voltando abatido com a notícia de que o país havia superado a barreira dos 100 mil mortos, a ema o espera, então, na porta do Alvorada. Ao vê-lo, a ave emite sua lúgubre mensagem: “nunca mais!”.

“Já é demais”, Bolsonaro reclama, e exclama: “Até tu, ema?”.