Hiperinflação

O real mudou o Brasil

Há três décadas, no final de fevereiro de 1994, a inflação mensal estava a 42,3%, e a anual passava de 3.000%

Por Paulo Paiva
Publicado em 08 de março de 2024 | 04:00
 
 

No final do século XIX, às vésperas da Proclamação da República, Machado de Assis, em “O Câmbio e as Pombas”, reclamara: “Que quer o senhor que eu faça com este câmbio a 9?”. Naquela época, a taxa de câmbio era expressa na quantidade da moeda inglesa equivalente a um mil-réis. E, se já estava difícil conviver com o câmbio a 9 pence, o que dizer quando a conversação do mil-réis caiu para 8? “Dois círculos, um por cima do outro... Um par de olhos tortos e irônicos”, observara, desiludido, o escritor.

Há três décadas, no final de fevereiro de 1994, a inflação mensal estava a 42,3%, e a anual passava de 3.000%. Conforme registrado nos arquivos do Senado Federal, às vésperas de o governo encaminhar ao Congresso a primeira MP do Plano Real, criando a Unidade Real de Valor (URV), o senador Nabor Júnior (PMDB-AC) pôs a hiperinflação brasileira em termos concretos e práticos: “O pãozinho francês de 50 gramas, que é a alimentação básica da população brasileira, na semana passada custava CR$ 38 (cruzeiros reais) e hoje está sendo comprado a CR$ 58”. Em sete dias, mais de 50% de aumento. E acrescentou: “Não podemos admitir que isso ocorra num tempo democrático e fundado nos direitos sociais”.

Hoje, a inflação anual (4,2%) é apenas 10% da inflação mensal de 30 anos atrás! É discutido se, para que caia até 3% (centro da meta) no horizonte relevante, o Banco Central vai manter a taxa de juros em 11,25% ou reduzi-la, gradativamente, até chegar a 9%, no final do ano. O que diria Machado de Assis?

Após tantos fracassos na tentativa de um governo de transição vacilante de conter a hiperinflação, o presidente Itamar Franco colocou em risco seu mandato e a frágil estabilidade política ao adotar medida inovadora para conter a hiperinflação, que lhe fora submetida por FHC, seu ministro da Fazenda, qual seja a implantação de uma espécie de quase moeda, na expressão de um dos pais do real, Edmar Bacha, referindo-se à URV, ou uma versão virtual do real, “na sua criptoexistência”, na leitura recente de Gustavo Franco, outro membro-chave dos economistas de FHC, até que nova moeda, o real, entrasse triunfante em circulação, em julho de 1994. Pura criatividade.

Ciente do que ocorria mundo afora, a equipe de FHC não teve dúvidas, ancorou a URV no dólar, para sossego do Bruxo do Cosme Velho.

A ousadia e a coragem de Itamar Franco e FHC, responsáveis por mudança tão profunda na economia brasileira, restabeleceram a normalidade monetária, abriram caminho para o crescimento e preservaram a democracia. O país tem ainda muitos problemas, mas na macroeconomia eles são menos complexos do que foram outrora, como indica, por exemplo, o conflito entre governo e Banco Central sobre taxa de juros, equilíbrio fiscal, inflação e crescimento. Preservar o poder aquisitivo da moeda é a mais importante das políticas sociais. Vida longa ao real.