Renata Nunes

RENATA NUNES escreve às sextas-feiras. renatanunes@otempo.com.br

Arte de tecer a vida

Publicado em: Sex, 24/06/16 - 03h00

Os fios se cruzam e, aos poucos, vão ganhando forma pelas mãos da mulher. Ela tece o suéter como coordenou a vida: sem pressa e sem muitos devaneios. Compondo, criando, construindo suas histórias da mesma forma que constrói sua arte: de forma silenciosa e serena. Não tem pressa de chegar ao fim. E, quando ele próximo lhe parece, já pensa numa nova peça, pois precisa recomeçar. Tricota atentamente e se encanta com cada ponto, cada detalhe. Como se, unidos, os tais pontos fossem alicerces nos quais pudesse se apoiar. As mãos, hoje marcadas pelos sinais dos anos, já foram mais ligeiras. A vista, às vezes cansada, ainda brilha diante de tantas cores. Desata nós, desembola novelos e rendas para depois arrematá-los.

O encanto por tecer veio da infância. Aprendeu só de olhar a avó. Quietinha, sentada no fundo da sala, observava o encaixe de uma agulha na outra, o transpassar dos fios, a construção de cada enlace. Parecia mágico na percepção da garotinha. A textura da lã era como as mãos da idosa em seu rosto: macias. Traziam-lhe sensação de afago. No cantinho, ouvia os casos de gente grande. A mãe também tricotava com a avó enquanto conversavam. Falavam de coragem, de amor, de família... Às vezes, apenas ficavam em silêncio, emanando o afeto que sentiam uma pela outra. E a menina a olhá-las e a sentir junto com elas.

Quando a avó partiu, já era jovem. Mas chorou como menina, bem baixinho, abraçada aos novelos na sala. Bagunçados entre outros tecidos e agulhas de diferentes espessuras. Teceu, naquele dia, a amargura da dor. Mais tarde, porém, fortaleceu-se nos seus fiapos de lembranças, na infância doce e generosa. Com a mãe, arrumou o quartinho que se tornaria seu. Aprendeu novos pontos, outros bordados... não podia parar. Sabia que ali estavam entrelaçadas gerações e entendia, pela primeira vez como adulta, a importância de fazer parte de um todo.

Assim, aos poucos, foi tornando-se mulher, compondo e coordenando a própria vida. Trançou elogios a tudo e a todos nos quais viu bondade. Mesclou sonhos, desconstruiu intrigas, desatou enganos. Fez e se desfez quando foi preciso, da mesma forma que fazia e desfazia suas peças, ponto a ponto. Enquanto tecia, aprendia, energizava-se. Em cada entrelaçado, um pensamento. Construía ao mesmo tempo em que imaginava como seria seu futuro. Unia os fios enquanto refletia sobre os outros e sobre si mesma. Às vezes, tricotava sua raiva, suas dores e dissabores – depressa e intempestivamente em pontos tortuosos. Em outras ocasiões, tecia com firmeza, porém lentamente, emanando serenidade e fé. Força e fragilidade eram fiadas numa só composição.

Hoje, já é senhora e ainda lida com os fios. Não tem pressa de parar. Aprendeu a conviver com o tempo. Sente-se agradecida em viver para poder ensinar. Aguarda a chegada do neto. Neta talvez. Ainda não sabe quem será o novo membro a fiar o amor pelos seus. Não está ansiosa. Tem temperança. Atualmente, preocupa-se apenas com o que pode controlar. Valoriza a presença dos que ama e para eles compõe novas peças. Faz da saudade a guardiã das lembranças. Sua arte é o ato de tecer histórias.

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