Representatividade

E o que você fez além de sobreviver?

Neste Natal, é isso que desejo a você: que faça da sua história a melhor que conseguir, apesar das travas sociais. Um passo de cada vez

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 22 de dezembro de 2023 | 03:00
 
 
Tatiana Lagôa, autora da coluna Representatividade Fred Magno/O TEMPO

Então, é Natal! E em vários locais a cantora Simone já está nos cobrando, na clássica música preferida das lojas: “O que você fez?”. Eu não sei você, caro leitor, mas eu digo que sobrevivi. Não, esta não é uma coluna na qual vou chorar meus lutos recentes, minhas dores pessoais ou algo assim. Eu poderia, sim, escrever vários textos sobre isso, mas, aqui, eu quero mesmo é dar parabéns a vocês, mulheres e homens negros, que seguiram mais um ano, mesmo sendo alvos principais de agressões de toda ordem.

Acreditem em mim: se você é preto em um país racista como este e não foi barrado em loja de forma agressiva nem passado por abordagens policiais em tons mais elevados do que o esperado neste ano, se considere um vencedor. Só por hoje.

Vinicius Junior, um dos melhores e mais bem-sucedidos jogadores brasileiros, que o diga. Nem ele conseguiu se safar da ira de quem não consegue aceitar pretos em destaque. A cantora Jojo Todynho, então, haja paciência para passar pelo que ela passa. Recentemente, em Recife, teve que ouvir que negros são arrogantes. Ela estava APENAS passeando, com o dinheiro dela, livremente, e alguém se sentiu confortável o suficiente para agredi-la, do nada.

Citei aqui esses dois casos de pessoas públicas, mas eu poderia contar muitas histórias de anônimos. No entanto, o fato de termos sobrevivido, passado ilesos por violências físicas, não é sinônimo de não termos sido vítimas de racismo. Até porque, não se engane, o preconceito está nos pequenos detalhes. Na piada cotidiana, no olhar entre prateleiras, na pergunta “despretensiosa” sobre o que fazemos da vida, na dúvida se a filha com pele mais clara é de fato sua. O preconceito se espalha em cada uma dessas situações. Ele vem camuflado de dúvida, com voz baixa e, muitas vezes, sorriso nos lábios.

O preconceito está onde você está muitas vezes, mas, astuto que é, ele finge nem existir. “É uma brincadeira”, dizem uns. “Foi uma pergunta”, explicam outros. “É uma ação”, complementam vários. Enquanto isso, morremos atrás dos “SÓS”. Morremos de “morte morrida”, que inclui causas múltiplas, como fome, falta de acesso à saúde, à moradia adequada, ao esgoto e à água tratada. Morremos com uma corda no pescoço pela desesperança de que um dia não existirão mas os tais “SÓS”.

Nem da solidão e muito menos da redução das nossas dores. Morremos metaforicamente cada vez que somos excluídos de ambientes, quando vemos nossos iguais sofrendo, ou quando não vemos sinais de mudança em uma estrutura social rígida e excludente.

Mas este é um texto de Natal. E, como também diz Simone, “o ano termina e nasce outra vez”. Teremos mais 365 dias. Não para sobreviver, subsistir, engolir o choro e ouvir que somos fortes.

Teremos mais um ano inteiro de resistência e para nos lembrar que, se não morremos como nossos pares, talvez tenhamos uma missão. Não porque somos mais especiais do que aqueles que sucumbiram. Ou mais espertos, resistentes ou bem-sucedidos. E sim, porque os que se foram concluíram suas missões, e nós, por qualquer razão ainda não explicada, aqui estamos. Já que estamos, que possamos fazer alguma diferença para que não existam tantas desistências, dores e perdas. Como fazer isso? O que temos que fazer? O que a vida quer de nós? Essas dúvidas devem nos impulsionar a buscar mais do que sobreviver.

E, para te inspirar, leitor resistente que chegou até aqui, eu indico a série da Netflix “Rainhas Africanas: Njinga”. Na primeira temporada, é narrada a história da Njinga, também chamada de “Ginga” ou “Nzinga”. Ela foi soberana de Dongo e Matamba, onde hoje é Angola, bem nos tempos em que os portugueses avançavam na escravização dos povos africanos.

Ela sofreu demais, perdeu pai, filho, irmãs e viveu ameaçada em todo esse contexto. Porém, lutou e durante muito tempo conseguiu cessar o tráfico negreiro nas terras lideradas por ela. Apesar das perdas e de ver os que ela amava partirem, Njinga seguiu e fez história. E, neste Natal, é isso que desejo a você: que faça da sua história a melhor que conseguir, apesar das travas sociais. Um passo de cada vez.