Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa

Tatiana Lagôa é jornalista e integra a lista dos 550 jornalistas mais premiados do Brasil. Atualmente, é editora de Cidades, colunista responsável pela Coluna RepresentAtividade e integrante do Programa Interessa, da FM O TEMPO.

REPRESENTATIVIDADE

Pimenta nos olhos alheios é refresco?

Nunca é tarde para nos envergonhar dos nossos preconceitos, que são muitos

Por Tatiana Lagôa
Publicado em 09 de maio de 2024 | 15:18
 
 
 
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Imagine: você leva sua filha, sobrinha ou qualquer criança de seu convívio, de 10 anos, para fazer uma hidratação nos cabelos. A ideia é melhorar a autoestima de uma criança que está sofrendo bullying na escola. Aí, depois de lavar os cachos, você descobre que o profissional do salão passou química e mudou a estrutura dos fios permanentemente sem sua autorização. Sem te perguntar, por exemplo, se a criança é alérgica, e sim, poderia morrer, ao passar um produto na cabeça. Contando assim, parece algo completamente absurdo e improvável de acontecer, né? Mas e se eu te contar que é uma história real e, pasmem, há quem diga que reclamar disso é “mi-mi-mi”? 

Só para contextualizar melhor: fizemos uma reportagem em O TEMPO contando a história de uma criança que passou por isso em um salão em Belo Horizonte. O responsável pelo local se justificou para a mãe dizendo que trocou os produtos sem perceber. Só para refletirmos mais sobre a gravidade dessa fala, isso seria o equivalente a você pedir um suco de limão para uma criança em um restaurante e servirem uma caipirinha. Se alegassem depois que confundiram a cachaça com a água, estaria tudo certo depois? Não, né? Talvez, com a comparação do suco, a história fique mais universal, já que toda criança se hidrata em restaurantes. Porque, aparentemente, para pessoas de cabelos lisos, a dor de ter os fios totalmente alterados sem permissão não seja palpável. Afinal, não são comuns relatos de alguém com cabelo liso sair com uma cabeleira crespa. Pelo menos eu não conheço – e se tiver vai merecer reportagem. 

Agora, você pode estar, daí, se perguntando por qual motivo eu decidi falar sobre isso. É porque, ao ler os comentários na matéria que denunciava o sofrimento dessa criança, eu não resisti. “Em 20 dias, o cabelo anela de novo, minha senhora. Pelo amor de Deus”, disse uma pessoa. “Gente, muito mi-mi-mi, o cabelo ficou ótimo”, disse outra. Se estivéssemos noticiando o caso da caipirinha, será que essas mesmas pessoas falariam algo do tipo: “Ah, a criança ficou até mais alegrinha depois de beber” ou “Que mimi-mi, depois sai no xixi”? Quero acreditar que não, porque seria um total absurdo. Então, eu acho que talvez estejamos diante de um quadro propício para lembrar o velho ditado popular: “Pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

Citei esses dois comentários, mas foram muitos outros com o mesmo tom. Estaríamos perdendo nossa capacidade de empatia? Teríamos chegado a um ponto em que nosso individualismo nos cegou? Só dói o que nos afeta diretamente? Ou será que isso é só mais uma faceta do racismo estrutural, que leva a sociedade a normatizar violência contra pessoas negras? 

Tudo bem alisar um cabelo sem autorização, uma vez que o padrão social é o fio liso? Isso é o inconsciente coletivo racista, que desvaloriza tudo que tem ligação com raízes negras. Há quem acredite que esse salão não tenha cometido um crime contra essa criança, e sim um favor. Se você se enquadrou nesse grupo, eu só tenho uma coisa a dizer: melhore enquanto ser humano. Nunca é tarde para nos envergonhar dos nossos preconceitos, que são muitos. E que suas crianças nunca passem por situações violentas e ninguém nunca diminua a dor delas. 

Essa criança que teve o cabelo alisado não teve a mesma sorte. Vítima de racismo na escola, ela ainda foi submetida a essa situação no salão e depois julgada no “tribunal” da internet. 

Como uma pessoa que já ouviu em salão de beleza, na infância, “Por que você não alisa este cabelo?”, ou “Preciso cobrar três escovas de tão sofrido que é escovar o seu cabelo”, e que, no fim, se rendeu à pressão social, eu digo que não é agradável passar por isso. Hoje, já curada dessa dor e de pazes feitas com meus fios antes alisados, eu digo que não tem nada de “mi-mi-mi” nesse assunto.

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