Hoje eu queria escrever sobre a festa na rua. Sobre a alegria dos encontros, dos corpos despidos e fantasiados, a descoberta da cidade. Sobre a expedição do Tico Tico Serra Copo na praia do Ribeirão do Onça, a confraternização do Filhos de Tcha Tcha com a irmandade dos Carolinos, os vários blocos alargando o tempo em tardes de sol e chuva de mangueira dos quintais.

Mas é preciso falar da violência, agora. A violência dos policiais militares que atacaram o Bloco da Bicicletinha, atropelaram um ciclista e semearam o caos em uma situação antes tranquila (http://on.fb.me/1nZH3Ox). A violência da CBTU ao fechar a estação de metrô que era parte do percurso do Tchanzinho da Zona Norte, rompendo acordo com o bloco e usando de força policial desproporcional e abusiva (http://on.fb.me/1Ldyt3u). A violência da prefeitura ao cercar a região sob o Viaduto Santa Tereza, tornando o espaço público uma área VIP e impedindo o trajeto do bloco Angola Janga, cuja proposta é o empoderamento das mulheres negras (http://on.fb.me/1T2UqZE).

Estas não são situações atípicas. Acontecem em nossa rotina de desigualdades e preconceitos. Dizem respeito à nossa violência secular, tendo a polícia militar como braço armado do estado e os excluídos de sempre como alvo preferencial. Ver essa sina se repetir no carnaval só torna tudo mais forte.

No livro “Meu casaco de general”, o antropólogo Luiz Eduardo Soares conta que, em comunidades tomadas pelo tráfico, muitos moradores sentem mais medo da polícia do que de traficantes. Não que a violência do tráfico seja pequena, mas possui regras mais ou menos claras. O que torna mais perversa a violência policial é sua arbitrariedade, seu fator surpresa, fazendo da vida um constante esperar pelo pior, que volta e meia acontece, com muita brutalidade e pouca repercussão na imprensa.

Quando a polícia irrompe, na contramão, contra um grupo de ciclistas alegres, fantasiados e tranquilos, atropela um deles para em seguida o prender, com uso de muita força, o machuca e coage para que ele assuma a inverossímil história de que arremessou sua bicicleta contra o camburão, joga bomba de gás e atira na geral, só está repetindo seu protocolo cotidiano nas periferias da cidade (não por acaso, uma pesquisa mostra que mais de 70% dos brasileiros não confia na polícia).

Quando a CBTU fecha uma estação de metrô para impedir que um bloco de carnaval complete seu trajeto, pouco se importando com os foliões e menos ainda com os demais passageiros que nada têm a ver com isso, só reforça a negligência com a mobilidade urbana – a tragédia cotidiana de milhões de pessoas que passam horas em um sistema precário e caro.

Quando a Prefeitura permite que uma empresa privatize uma grande área pública, restringindo acesso, criando monopólio da cerveja de milho transgênico e excluindo parte da população, só reitera sua serventia ao mercado e sua lógica de condomínios aplicada à cidade.

Como se não bastasse, vem o prefeito Márcio Lacerda chamar os ciclistas atacados pela polícia de “rebeldes sem causa”. O prefeito, que às vezes parece uma máquina de geração automática de comentários infantilóides, toscos e sem graça, recorre à velha culpabilização da vítima e mostra desconhecimento da situação: entre os “rebeldes” estavam membros do GT Pedala BH, que dialoga e colabora voluntariamente com a prefeitura. O ciclista que foi preso trabalha para a BHTRANS e dá duro para refazer ciclovias que foram mal feitas há alguns anos.

É um tanto simbólico que os blocos em questão representem justamente grupos rotineiramente violentados: ciclistas, moradores da periferia e mulheres negras. E é um tanto mais simbólico que os procedimentos usados sejam o atropelamento de um ciclista, a interrupção do metrô e a negação de acesso a uma área pública, tudo com o uso de muita violência.

Pelo (in)consciente coletivo que habita os aparatos de poder, o recado está dado: o carnaval (e a cidade) dos sonhos do estado conservador é feito por automóveis que ligam áreas privadas, com gente selecionada, onde não há espaço para ciclistas e usuários de transporte coletivo, quanto mais se forem negros e pobres. A força das ruas tem sido muito maior do que esse pesadelo e o carnaval em BH continua democrático. Resta saber até quando.