Em setembro de 2007, tive o prazer de ver a Companhia de Pina Bausch, num teatro em São Paulo. Estava acompanhada de duas amigas, Michele e Soraya, que amam a bailarina e coreógrafa. Foi das coisas mais lindas que vimos. Por isso, quando soubemos que ela voltaria para nova temporada, em setembro próximo, combinamos uma nova viagem para a capital paulista.
Desta vez, poderíamos ter a chance de ver Pina no palco, em "Café Müller". Os ingressos começariam a ser vendidos ontem, ironicamente no dia do anúncio de sua morte. Com a triste notícia, mal contivemos as lágrimas. Lágrimas que vieram de outro lugar que não aquele que embasaram a minha visão ao final do espetáculo que vi e que me fizeram escrever essa crônica, em 6/9/2007, que agora peço a licença de reproduzir:
Antes de sábado, só tinha visto Pina Bausch no cinema, na comovente cena de "Fale com Ela" (2002), filme de Pedro Almodóvar, que usa com inteligência um trecho de "Café Müller", um dos espetáculos da coreógrafa alemã, para enriquecer ainda mais sua narrativa.
Nela, a própria Pina vai de um lado a outro do palco, absorta, catatônica, sem perceber ou sem se importar com as várias cadeiras que estão no caminho. Não percebe, talvez, porque dois homens se apressam em retirar os obstáculos do meio. A cena em "Fale com Ela" não está ali como mera ilustração.
Tem importância fundamental para o desenvolvimento da trama, a bela história de amizade entre Benigno (Javier Cámara) e Marco (Darío Grandinetti), que na plateia do teatro, vendo Pina Bausch, não sabem ainda que suas vidas irão se cruzar de forma definitiva.
A primeira cena de "Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã", espetáculo da companhia da diretora alemã que foi apresentado em São Paulo semana passada, me remeteu a essa de "Café Müller".
Dois homens sentados, lado a lado, numa mesa de frente para o público. Um deles se deixa cair para o lado e, não fosse o outro segurar-lhe o pé, despencaria no chão. Pensei na importância do outro para Pina Bausch.
Sem o outro, nos chocaríamos contra as cadeiras ou cairíamos de cabeça. As coreografias seguintes reforçam minha ideia - uma moça é levada por um homem de lá pra cá como se fosse uma boneca de pano; uma mulher é puxada como se tivesse cordas; um homem altíssimo é carregado por outros quatro; bailarinas se transformam em pássaros, graças ao apoio de homens.
"Para as Crianças de Ontem, Hoje e Amanhã", porém, vai além. Fala, com humor e emoção, da construção das relações humanas. E que maneira mais bela de dizer esta, a do movimento.
São praticamente três horas de espetáculo, em que os exímios bailarinos mostram todo o virtuosismo e toda técnica, toda a graça e todo despojamento. Sublimes os momentos solos, mas encantador quando todos estão no palco, preenchendo cada espaço com suas energias criativas.
Além de gestos, eles falam... em português, num simpático esforço para se comunicar.
Mal - ou bem - sabem eles que nós, a plateia que tomava todas as cadeiras do teatro, já estávamos completamente seduzidos e que se eles desembestassem a falar palavras em húngaro, permaneceríamos ali, loucos para absorver o que tinham para nos mostrar.
Sim, isso ficou claro na forma como o público se despediu. Não queríamos que fossem embora e para termos um pouquinho mais deles, ainda que fossem extenuados, os seduzimos com o que estava ao nosso alcance: a ovação.
Era o que nos cabia: bater palmas até as mãos ficarem vermelhas, gritar, já que nossos olhos cheios de lágrimas eles não puderam ver.