Reportagem

No meio do caminho tinha um CCBB

Frequentadores narram como a vivência no centro cultural, que completa cinco anos, marcou suas vidas

PUBLICADO EM 25/08/18 - 03h00

Há quatro anos e nove meses, Washington Silvestre, 45, vai, de quarta a segunda, com um carrinho de pipoca, para a frente do prédio onde localiza-se o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte – ele é figurinha carimbada na região. Foi ali que começou a reconstruir sua própria história, depois do fim de um casamento de 15 anos e do assombro de um vício lhe acometer. Ex-gari, o pipoqueiro não só encontrou renda para ajudar a criar os seis filhos como ampliou horizontes em meio às galerias de arte e salas de teatro que estão logo ali, a poucos passos.

Ele, que chegou a viver nas ruas entre 1984 e 1985, nunca havia visitado um museu em sua vida. De repente, três meses depois da abertura do CCBB, viu, no lugar, a oportunidade de fazer seu ganha pão. O movimento logo naqueles primeiros meses o surpreendia – tanto que, intrigado, não tardou adentrar o casarão, que antes o intimidava.

Caminho sem volta. Silvestre é exemplo da diversidade de um público que, de quarta a segunda adentra o imponente prédio ocupado pelo CCBB BH. Na próxima segunda (27), aliás, completa-se cinco anos da inauguração do equipamento. Desde então, foram mais de 360 projetos, entre mostras, espetáculos musicais e teatrais, intervenções, performances e outras manifestações artísticas que atraíram pelo menos 3,3 milhões de visitantes. 
“Aqui vem de lobisomem a mula sem cabeça”, é assim, com gracejo, que Silvestre analisa o perfil dos que vê cotidianamente por ali. “Um dos prédios mais bonitos e populares, que não faz distinção de ninguém”, reforça o pipoqueiro. A verdade é que a proximidade física com esse templo da cultura em Belo Horizonte fez com que ele vencesse a timidez. Hoje, orgulha-se de duas credenciais que antes escondia da própria família: “Sou poeta e compositor”. Sonhando publicar um livro, talvez até gravar um disco, ele faz do carrinho de pipoca a ferramenta para expor suas criações poéticas.

Não deixa de ser curioso que, assim como Silvestre, a atual exposição do CCBB seja de um artista que fez de tudo – fossem telas ou geladeira, porta e pneus – um sustentáculo para seus trabalhos artísticos: o pintor, desenhista e músico Jean-Michel Basquiat (1960-1988). As tantas facetas do nova-iorquino não passaram despercebidas pelo rapper Djonga, que visitou a mostra. “Ele é referência absoluta para mim. Foi e é um dos maiores artistas, um dos que mais admiro”, expõe ele, que aos 24 anos já é considerado um dos nomes mais influentes do rap atual. Tanto que, admite, os trabalhos de Basquiat, mesmo que de maneira inconsciente, estão presentes em suas músicas e videoclipes, que alcançam milhões de visualizações e causam furor na internet.

O uso indistinto de suportes por Basquiat, diga-se, é também motivo de encantamento para a ilustradora e designer Janaína Barboza, 22, – ou simplesmente Jana, como prefere ela. À época da abertura do dispositivo, um dos 16 que integram o Circuito Cultural da Praça da Liberdade, a moça não era habitué dos palcos das artes na cidade. Em 2014, quando começou a faculdade de design gráfico, se viu na obrigação de frequentar estes espaços. Para a estudante, no começo, as visitas ao centro cultural eram meramente obrigação, exigências do curso. 

Com o passar do tempo, passou a notar, ali, uma fonte de referências que compunham seus trabalhos. 

Agora, Jana percebe que as passagens pelo CCBB deixaram marcas indeléveis no seu trabalho artístico. O abstracionista russo, posteriormente radicado na Alemanha, Kandinsky (1866-1944), foi o tema da exposição que recorda ter visto pela primeira vez no lugar. Do modernista Mondrian (1872-1944), um dos grandes expoentes do movimento De Stijl, por exemplo, herdou uma diferenciada perspectiva de traços postos em planos. 

Mas é de “Ex Africa”, exposição que trouxe panorama da arte contemporânea do continente e da identidade da África moderna, e, principalmente, de Basquiat, que vieram as mais fortes referências da jovem designer e ilustradora. “Foram mostras que, de formas diferentes, vieram com uma proposta de refletir sobre a ancestralidade, algo importante para mim, algo que quero imprimir em meu trabalho”, pontua Jana.

O guitarrista Guilherme Bacellar, 23, também se viu inebriado em uma visita ao lugar. Hoje vivendo em Ouro Preto, onde cursa direito, ele carrega na epiderme as vicissitudes provocadas nele pela exposição panorâmica de Leonilson (1957-1993), que esteve em BH em 2015. 

É que reproduziu, no bíceps, um desenho em nanquim, de 1993, do artista cearense radicado em São Paulo, no qual se vê um homem sobre uma corda bamba e, abaixo, tubarões.

Visitante assíduo do centro cultural, o poeta Pedro Muriel, 31, na verdade, tem expertise no que concerne a museus mundo afora: já perscrutou obras em espaços situados em Florença, Lisboa e Madri, assim como se deleitou no Museu do Vaticano, para ficar em alguns exemplos. Não por outro motivo, lembra ter ficado apreensivo após dois adiamentos da abertura do casarão – uma em 2011 e uma em 2012, por conta de entraves na restauração e adequação do prédio, erguido em 1927, e que abrigava a Secretaria da Defesa Social e a Procuradoria Geral do Estado.

Esperar, assegura Muriel, valeu a pena. O autor que usa uma cadeira de rodas, classifica o lugar como um oásis em matéria de acessibilidade em Belo Horizonte. Tanto que o visita de forma recorrente. Só entre julho e agosto, foram quatro idas. E elas começaram logo com a mostra inaugural: “Elles – Mulheres Artistas na Coleção do Centro Pompidou”, de 2013 (em destaque no alto desta página na capa do Pampulha que anunciava a abertura do centro cultural). 

Sem ter perdido nenhuma exposição até hoje e também acompanhando a programação teatral (“nunca saí decepcionado”) e musical (“a que mais me marcou foi um show de Jaques Morelenbaum, durante o Savassi Festival”), Muriel é categórico que sim, “estamos muito bem representados, mesmo diante de outros dispositivos em vários países do mundo”. Para o autor, aliás, o prédio em si é uma “portentosa obra de arte”. O teto de vidro, situa ele, traz à sua mente uma poesia nova a cada visita.

Destaques

Maior público Foi a artista australiana Patricia Piccinini que atraiu maior número de visitantes para BH: no total 311.665 pessoas foram ao CCBB, entre outubro de 2016 e janeiro de 2017, para ver a exposição ComCiência, que leva a questão das mutações genéticas para o território da arte. 

Prata da casa Em matéria de artes cênicas, foi a peça “Prazer”, do grupo belo-horizontino Luna Lunera, que atraiu maior público: de outubro a dezembro de 2013, o espetáculo inaugural da sala de teatro do centro cultural, com capacidade para 264 pessoas, levou ao CCBB 9.533 espectadores.

Próxima mostra Em 12 de outubro, o CCBB de BH recebe “Construções Sensíveis”, um recorte da abstração latino-americana. Nela, o legado do concretismo e neoconcretismo brasileiros, são apresentadas as poéticas abstratas que prosperaram em outros países latinos a partir dos anos 1930.
Programação diversa <MC>No último sábado (18), o CCBB recebeu os coletivos Batekoo e Classic’s Hip Hop, dois importantes representantes da cultura negra e periférica da capital. Ações assim fazem parte do projeto Múltiplo Ancestral, iniciativa do Programa CCBB Educativo. 

Espaço insere BH no circuitão

Com “Prazer”, a companhia de teatro Luna Lunera inaugurava, há cinco anos, uma das salas do CCBB BH. De lá para cá, ir ao lugar passou a ser uma constante no cotidiano dos atores, como reforça Odilon Esteves. “Além das peças, exposições e shows, os cafés são muito atrativos para encontrar e conversar com amigos”, elogia ele, para quem o equipamento trouxe grande ganho para a cidade. “Há duas coisas importantes aí: a insistência na continuidade, com temporadas longas, e a aposta na diversidade, indo de grupos experimentais a artistas reconhecidos no teatro ou na TV”, situa.

Com a celebração do quinto aniversário, Esteves relembra sua memória mais forte: a temporada inaugural. “Seriam 36 apresentações e foram 40”, diz, exaltando a aposta do espaço de que haveria público para tanto tempo – somaram, ao fim, dez mil espectadores. No último dia, no pátio, realizaram um flash mob, com direito a banho de mangueira. “Foi algo emocionante, um batismo para nós – e para o espaço”.

Grandiosidade

Em outubro passado, Adélia Pinheiro, recepcionista do CCBB BH, se acomodou na praça da Liberdade e, como habitualmente faz defronte obras de arte, contemplou a cena de um guindaste instalando, no meio do pátio do equipamento, uma das grandes obras da exposição “O Corpo É a Casa”, do austríaco Erwin Wurm. É a essa memória que recorre para expor como viu materializar diante de si a importância da instituição, que há cinco anos chegava à cidade.

Dos anos de CCBB, Adélia é parte desde 2014. Nesse tempo, coleciona histórias – e uma recentíssima está entre as mais marcantes. “Um senhor que mora aqui, na região, na rua, sempre vem”, comenta, contando que ele faz orações à Deusa da Justiça – uma alegoria nos vitrais do prédio histórico. Ali, busca água e faz uso dos banheiros, mas rejeitava a ideia de ir às galerias. No último convite, cedeu e participou de uma visita guiada à mostra “Basquiat”. “Saiu com olhar gratificado”, comemora. 

Se os perfis de visitantes são diversos, a razão, arrisca ela, seria a programação dinâmica, em largas temporadas, preços acessíveis (as entradas custam no máximo R$ 30, para a programação paga), além de horários atraentes (as portas ficam abertas entre 9h e 21h). 

Além disso, a experiência não é meramente contemplativa. O gerente geral da unidade mineira do CCBB, Marcelo Nonnenmacher, frisa o empenho do espaço em proporcionar exposições interativas, carro-chefe, por exemplo, de “File: Arte Eletrônica na Época Disruptiva” – segunda maior em público, somando mais de 167 mil visitantes entre janeiro e março deste ano.
Aliás, o volume de público atraído pelo CCBB é imponente. Para se ter uma ideia, em 2017, cerca de 1,6 milhão de pessoas passaram pelo Circuito da Praça da Liberdade. Deste público, analisa Nonnenmacher, quase metade (775 mil) passou pelo equipamento. Portanto, mais que um espaço cultural, trata-se de um centro turístico, pontua Adélia. E se ela se deu conta da grandiosidade do projeto ao se deparar com uma opulenta operação para levar uma exposição ao local, foi da perspectiva de uma jornalista francesa, que estava na cidade por conta da Copa do Mundo de 2014, que o arte educador Danilo Filho passou a compreender o significado do CCBB para BH. “Ela ficou muito surpresa, disse não esperar que um museu em Belo Horizonte, cidade que pouco tinha ouvido falar, fosse deixá-la tão impressionada”, comenta, reforçando que a moça vinha de um lugar que é referência e de grande tradição quanto à manutenção de centros culturais.

Ex-funcionário da instituição, Filho lembra que quando era integrante do braço educativo do CCBB era cena comum ver pessoas abandonando o ponto de ônibus atraídas pelas visitas teatralizadas – nelas, o educador coloca em repasse a história da cidade e do casarão. “Além da programação, o próprio prédio diz muito sobre nós, sobre nossas raízes”, sustenta.

As observações de Filho são ratificadas por Raquel Meireles, há 23 anos professora de arte da rede pública de BH e de Betim. Ela conta que sempre teve o hábito de levar alunos aos dispositivos de cultura da cidade. Com a chegada do CCBB, então, passou a incluir a programação do local às aulas. “Tive uma turma que me surpreendeu ao fazer um link entre a abstração de Athos Bulcão (1918-2008), que puderam ver em exposição, e a arte indígena”, menciona ela, orgulhosa.

Democratização é desafio

Em meia década, o Centro Cultural do Banco do Brasil em Belo Horizonte foi capaz de causar transformações significativas na cartografia das artes na cidade, mas a luta pela democratização do acesso ainda é um desafio constante – é o que examina Fabiana Abaurre, professora de Circuitos Artísticos Culturais e Arte Contemporânea da PUC Minas. “O fato de estar na região Centro Sul já é um empecilho ao acesso, embora a instituição se esforce em se abrir a todos os públicos”, pondera. 

Claro, a disponibilidade de ônibus para visitas escolares e a gratuidade no acesso às exposições marcam pontos contra o estigma de os centros culturais serem vistos como elitizados.

Para a professora, a força do dispositivo é ligada, fundamentalmente, à capacidade de trazer para a cidade novos olhares, com mostras de artistas renomados, como a “Elles”, com acervo do centro Georges Pompidou. “Belo Horizonte está levando a arte para a rua com o carnaval, a Praia da Estação, os grafites, festivais...”, examina a docente, adicionando que o circuito institucional acaba integrando esse roteiro. “Não diria que o CCBB trouxe para a cidade uma revolução, mas causou, sim, transformações significativas”, baliza ela. 

René Lommez Gomes, professor curso de Museologia da UFMG, ratifica as observações de Fabiana. Ele sustenta que há dois aspectos fundamentais da instalação do equipamento na cidade: oferecer acesso a uma vasta produção artística e “reforçar uma transformação que vem ocorrendo na economia da cultura em Minas”. Fazendo vislumbrar os próximos anos, Gomes sustenta que o CCBB pode apostar em uma conversa mais profunda com a produção de artistas locais. 

Outro docente da universidade federal, Eduardo de Jesus, do Departamento de Comunicação, acredita que a instituição pode mirar investimentos em cinema. “Em uma cidade como a nossa, que tem vocação ligada ao audiovisual, com eventos e salas alternativas cheias, este é um ponto para se conectarem mais com a BH”.

Um projeto assim, por sinal, já está no radar de Marcelo Nonnenmacher, gerente da unidade belo-horizontina do CCBB. Ele impõe como meta, para os próximos cinco anos, a abertura do quarto e do quinto andar, ampliando o espaço expositivo do equipamento, e a inauguração de duas salas de cinema.