Durante sua passagem pelo Teatro Oficina, em São Paulo, no início dos anos 1980, a atriz Teuda Bara, 74, descobriu que estava grávida de seu segundo filho. Recebeu, dos colegas de elenco, o conselho de que era melhor abortar, afinal, viver de teatro já era suficientemente difícil com um só. Dividida, ela sofria entre o argumento racional da dificuldade de criar mais um filho e a vontade de ter o bebê.
Um dia, enquanto o grupo tomava café, José Celso Martinez Correa, diretor do Oficina, a abraçou por trás, pôs as mãos em sua barriga e disse: “Não aborta! Não vai abortar! Vai ter esse filho, sim! Você quer, vai ter esse filho e vai tê-lo no palco! Ele vai nascer e ainda vai ser mais um artista pro mundo!”.
A profecia de Zé Celso acabou se cumprindo. E é ao lado do filho, Admar Fernandes, que ela sobe ao palco com o espetáculo “Doida”, em cartaz neste fim de semana em BH. A peça, juntamente com o perfil biográfico “Comunista Demais para Ser Chacrete”, do escritor João Santos, a ser lançado em dezembro, celebra os quase 40 anos de carreira e 75 de vida – ambos completados ano que vem – de uma das atrizes mais conhecidas do teatro mineiro.
Também uma das fundadoras do Grupo Galpão – e envolvida com o próximo trabalho da companhia, que realiza mostra de processo de ensaio de seu novo espetáculo em sua sede, do dia 22 ao 25 – é uma figura cuja gargalhada deliciosa “denuncia” sua presença e basta ter seu nome mencionado com quem a conhece de perto para fazer surgir histórias e mais histórias.
Singular
“A Teuda é muito singular, única no mundo, daquelas que quanto mais você viaja, conhece gente, mais ela faz falta na sua vida”, comenta o diretor Gabriel Villela, que dirigiu o Galpão nos espetáculos “Romeu e Julieta” (1992), “A Rua da Amargura” (1994) e “Os Gigantes da Montanha” (2013). “E ela deixa claro que é soberana, uma rainha, mas não é despótica. A Teuda é Minas. Depois dos 50 anos, a gente não é mais aquilo que é, somos o currículo que temos e a Teuda é um currículo superlativo, que não se enquadra nos padrões convencionais de vida, de estrada”.
Sua singularidade já começa pelo nome. Era para ter sido Theoda, nome de origem grega que quer dizer “a enviada de deus”, como queria a mãe, dona Helena, que era enfermeira e quis homenagear uma irmã de caridade da Santa Casa, onde trabalhou. Mas o cartório registrou Teuda.
O sobrenome Magalhães Fernandes deu lugar ao Bara – referência e homenagem à estrela hollywoodiana Theda Bara, de “Cleópatra” (1917) –, depois de uma longa jornada que incluiu, entre outras estripulias, ser expulsa (por querer) de um colégio interno, terminar um namoro de oito anos por uma simples ida ao edifício Maletta, namorar um ex-trapezista alemão do Circo Garcia, que deixou a trupe para ficar com ela e a seu lado conhecer todas as boates de Belo Horizonte da época, cursar ciências sociais, viver em comunidades hippies e até ser convidada pelo Chacrinha em pessoa para se tornar chacrete. Tudo isso para finalmente culminar no teatro. “Foi o Adyr Assumpção (seu companheiro em outro grupo que ajudou a fundar antes do Galpão, o Fulias Banana), quando estávamos fazendo ‘Triptolemo 17’ (em 1977) quem escolheu o sobrenome, eu nem fiquei sabendo. Ele deu uma entrevista prum jornal e me citou como a atriz Teuda Bara. Quando vi, até me assustei. Antes disso usava só Teuda, nem me considerava atriz ou artista, estava só tateando nesse universo, querendo aprender”, diz.
Um de seus grandes incentivadores foi o ator e diretor Eid Ribeiro. “Quando eu resolvi abandonar as ciências sociais, a primeira coisa que fiz foi procurá-lo, porque ele sempre me dizia ‘você tem que fazer teatro, você tem que fazer teatro. Porque você é muito doida!”, lembra. “E ele tinha razão, eu precisava mesmo fazer teatro”. Para Eid, era preciso canalizar toda aquela energia criadora. “Ela é uma pessoa de personalidade muito marcante, muito esfuziante. Achava que no teatro podia se dar bem”, diz.
Estrada
Em quase quatro décadas – mais de três delas, no Galpão – não só as histórias são muitas, mas também as emoções. “É muito bonito ir a lugares onde não há espaços de teatro. Por isso é bom fazer teatro de rua”, afirma. “Na peça ‘Till’, tem uma hora que eu fico atrás do pano, esperando minha hora de entrar. É quando eu vejo a cara do público e é a coisa mais linda ver o povo rir, se assustar, se emocionar”.
Além das experiências por todas as partes do Brasil, são muitas as memórias felizes no exterior. “A gente quase nunca traduz e isso não compromete em nada o interesse do público. No Uruguai, por exemplo, nós já fomos umas quatro ou cinco vezes e sempre temos que abrir sessões extras”, diz. “Numa das idas, a gente morreu de rir quando viu: cinco senhorinhas de braços dados, indo ao teatro, todas enfeitadinhas, bonitinhas”.
Foi numa dessas apresentações no exterior que ela acabou indo parar no Cirque du Soleil. O diretor Robert Lepage a viu fazendo “Romeu e Julieta” no Shakespear’s Globe, em Londres. Convidado para montar o espetáculo “Kà” na companhia canadense, chamou Teuda para fazer testes para um papel. “Eu acabei enviando a fita fazendo o que eles pediram só pra verem que eu não dava conta”, lembra.
Mas dava. E passou quatro anos em Las Vegas apresentando o espetáculo. Mas o Galpão estava sempre na cabeça. “Eu não consigo me imaginar sem eles. É o trabalho de toda uma vida”, diz.
Um furacão delicado e afetivo
Teuda Bara é uma figura tão marcante que pouca gente se esquece das primeiras impressões que tiveram ao conhecê-la. Inês Peixoto, sua companheira de Grupo Galpão e diretora do espetáculo “Doida”, lembra bem as suas. “Se não me engano, a primeira vez que a vi foi próximo ao teatro Marília, de blusa branca, sem sutiã, balançando aqueles peitos enormes pela rua e com um sorrisão. Essa imagem ficou marcada”, diz. “Depois nós fomos trabalhar juntas e eu a conheci de fato, com sua simpatia e carisma transbordantes, coração aberto e espírito feliz”.