Muita história pra contar

Setenta anos à vista

Um dos prédios mais icônicos de BH, o Edifício Acaiaca completa sete décadas em 2017, cheio histórias e sendo referência cultural e afetiva para a cidade

PUBLICADO EM 21/01/17 - 02h00

“’De fora’, estou no centro de Belo Horizonte. Mas quando entro, visito outras épocas”, define Antonilson Batista Pereira, da equipe de manutenção do Edifício Acaiaca. Pereira assumiu a função há apenas 10 meses, mas a viagem temporal à qual se refere tem lastro na história de uma das edificações mais emblemáticas da capital mineira – e que, este ano, se torna septuagenária.

O Acaiaca, vale lembrar, já reinou sozinho na Avenida Afonso Pena. Mesmo quando já cercado por outros prédios, soube se reinventar, ocupando lugar de honra na memória afetiva da cidade. Por sinal, é este o desafio hoje: aos 70, o Acaiaca quer ser reconhecido por sua importância histórica e cultural. A boa notícia é que já vem sendo foco de livros e filmes.

Como muitos outros mineiros, Antônio Rocha Miranda, 79, autor do livro “Edifício Acaiaca: O Colosso Humano e Concreto”, não tem memória de uma Belo Horizonte sem o Acaiaca. “Estive ali logo que ele terminou de ser feito. Usei um dos elevadores e tive uma sensação indescritível. Na época, ainda criança, aquilo pra mim era uma coisa impossível”, comenta, sobre a velocidade dos ascensores, que percorrem 26 andares em 20 segundos – ainda hoje, os mais rápidos da capital. 

A altura também causava surpresa. “Quase não dava para acreditar”, relembra Miranda. Na verdade, nenhum outro superou, em BH, os 120m de altura da construção, idealizada pelo empreendedor Redelvim Andrade e o arquiteto Luiz Pinto Coelho, seu genro.

É do ponto mais alto, da laje do prédio, que Antonilson Batista se impressiona pela vista que se estende diante dos olhos. Com o indicador, aponta para o distante Horto; do outro lado, vê a antiga Fundação Hilton Rocha, ao pé da Serra do Curral. Mas é em dias nublados que ele gosta mais de ver a montanha eleita símbolo de BH. “Parece que o céu abraça a terra”, diz. Mais próximo, se inclina e observa, atento, o trânsito de pessoas, carros, ônibus e motos ao redor do “Pirulito” da Praça Sete. “Lá embaixo, tudo parece uma bagunça, daqui de cima, tudo está organizado”, analisa. 

Igualmente impressionado, mas com pouco gosto por ficar longe do chão, João Alves de Souza, 77, – que trabalha no edifício há 50 – só esteve na cobertura uma vez. “Dá para ver Belo Horizonte quase inteira, mas não gosto, me dá tontura”, confessa ele. Ainda rapaz, no dia 1º de setembro de 1966, Alves começava a trabalhar ali, nos serviços gerais – cuidando, inclusive, da limpeza. Hoje ascensorista, ostenta o posto de “arquivo vivo”. “Se for escrever, dá uns dois livros. Se for pra contar, a gente fica uns três dias... e ainda não dá”, afiança. A memória, por sinal, não lhe trai. “Quando entrei, o síndico era um tio do (jogador) Tostão, que sempre vinha aqui. O Dadá Maravilha ainda vem, essa semana mesmo já passou”, comenta. 

Celebridades

Políticos também acorriam ao lugar. “Um que sempre me deixava meio assim era o Tancredo Neves (1910-1985). Eleito presidente, veio lá da Pampulha no caminhão do Corpo de Bombeiros e, antes de ir para o Palácio da Liberdade, parou aqui na frente e discursou”, rememora João Alves. “Quando estava por aqui, muita gente não sabia que era o Tancredo”, diz. E sim, tinha quem não acreditasse. Ainda entre as celebridades, lembra de já ter subido elevadores com Chico Anysio (1931-2012). 

A razão para que o lugar fosse frequentado por tantos famosos se explica pelos empreendimentos que ocupavam as 460 salas do Acaiaca em sua “era de ouro”, entre décadas de 1950 e 1960. Nesse período, lembra João Alves, passavam cerca de 35 mil pessoas por dia por ali. 

A elite belo-horizontina, por exemplo, era atraída pelas lojas de alta costura que ocupavam os departamentos do edifício. Caso da Sibéria Modas, que, muito além de provadores, dispunha de um espaço para que os clientes desfilassem com as peças escolhidas. Intelectuais também eram presença constante, já que de 1953 até 1964 funcionava ali a Faculdade de Letras e Filosofia da UFMG. Nesse período, o Acaiaca também foi polo da indústria têxtil mineira: funcionaram, ali, escritórios de importantes empresas. 

Em 1964, o 11º andar do prédio foi palco de reuniões entre militares, médicos, empresários e outros profissionais, que juntos se auto-intitularam os “Novos Inconfidentes”. Temendo o “avanço do comunismo no Brasil”, reza a lenda que chegaram a tramar o assassinato do então presidente João Goulart, meses antes de o Golpe de Estado ser instaurado.

Um dia, um jegue

Entre tantas histórias, João Alves lembra a presença da TV Itacolomi, da extinta Tupi. Inaugurada no dia 8 de fevereiro de 1955, a emissora funcionava no 23º e 24º andares. Para uma gincana da programação, o ascensorista chegou a subir com um jegue. “Não gosto muito de falar disso”, diz, sem jeito. 

E havia o Cine Acaiaca. Inaugurado em 7 de outubro de 1948, com o filme “Sempre te Amei” (1946), acolhia 826 espectadores e era frequentado por figuras marcantes, como o ex-prefeito de BH, Octacílio Negrão de Lima. A sala resistiu até os anos de 1990. 

Em 2 de outubro de 1998, um anúncio dizia que o espaço estava em manutenção. Tempos depois, virou templo (da Igreja Internacional da Graça de Deus), que funciona até hoje.

Não deixa de ser irônico que uma igreja evangélica volte a ocupar espaço no Acaiaca. “Quando BH foi pensada para ser a capital do Estado, o Presidente de Minas Gerais, Silviano Brandão, doou um terreno para a Igreja Católica, onde é a Igreja São José, e um para a Igreja Metodista, que funcionou no espaço por 38 anos”, explica Miranda. “Em 1940, passando pela avenida Afonso Pena, Redelvim pensou em construir ali o edifício”, continua. 

De acordo com sua pesquisa para o livro “Edifício Acaiaca: O Colosso Humano e Concreto”, o primeiro contato resultou em um veemente “não”. 

Mas o empreendedor não desistiu. “Ofereceu 2,5 mil contos de réis. Era uma coisa impensável, brinco que hoje é o equivalente às ofertas dos times chineses para os craques do futebol”, acrescenta. 

Miranda assegura que a oferta é tão vultosa que representou o maior negócio imobiliário desde o lançamento da pedra fundamental da cidade. 

Peculiaridades sobre o edifício

Lenda indígena Uma história dos arredores do Arraial do Tejuco, atual Diamantina, diz que “Acaiaca” era como uma tribo indígena chamava os cedros. E que, quando o rio Jequitinhonha inundou o mundo, um casal de índios se salvou ao se abrigar no cume da árvore, repovoando o mundo quando as águas baixaram. Seus herdeiros passaram a atribuir uma força sobrenatural ao cedro. Como o empreendedor Redelvim Andrade e o arquiteto Luiz Pinto Coelho são da região de Diamantina, acredita-se que foi por essa lenda que o edifício ganhou tal nome.

Mal-assombrado Na época da construção do edifício, em 1943, quando 250 operários trabalharam no empreendimento, dizia-se que o Acaiaca era assombrado: à noite, ouvia-se diversos sons estranhos. Os ruídos são explicados pela ação do vento nos vãos, ainda sem janelas.

Abrigo antiaéreo Por ter sido construído durante a 2º Guerra Mundial, um decreto do então presidente, Getúlio Vargas, obrigou a construção a projetar o porão, para que fosse resistente a ataques aéreos.

Vitral Por ter feito fortuna com o comércio de pedras preciosas, Redelvim Andrade teria mandado construir, no topo do edifício, uma estrutura de vidro em forma de cristal. Esta base já foi usada como sinalizador de aviso de aviões e como apoio para a Transmetro – órgão de regulamentação de trânsito.

Efígies As cabeças dos índios esculpidas seriam feitas pelo português José Bahia. Por uma série de eventualidades, porém, foi o arquiteto Luiz Pinto Coelho quem acabou assumindo a feitura das peças. Inicialmente, aliás, a obra o desagradou. Dizia que pareciam um “gângster americano” – e refez o trabalho.

Patrimônio cultural e afetivo de BH

Em 1994, a Prefeitura de Belo Horizonte, por intermédio do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município (CDPCM-BH), reconheceu a fachada do Edifício Acaiaca como patrimônio histórico municipal. Pouco tempo depois, foi a vez de o hall de entrada do prédio também ser tombado.

“Embora não seja protegido pelo Estado, o Acaiaca tem elementos históricos e culturais que lhe dão mérito para receber, talvez no futuro, o título de patrimônio de Minas Gerais”, explica Françoise Jean, diretora de Proteção e Memória do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – Iepha-MG.

Construído no estilo Art Déco – movimento artístico iniciado nos anos de 1920, que influenciou artes plásticas de todos os tipos –, que trazia estética mais limpa, voltada para aspectos funcionais, a importância do edifício “vai muito além da estética”, diz Françoise. Ela acredita que o prédio tem valores diferentes para cada geração.

“Até os anos de 1930, Belo Horizonte era uma cidade baixa, de vocação administrativa. Na década de 1940, no entanto, ela reverte isso e se torna um polo econômico. E isso é visualizado por meio da arquitetura”, analisa Françoise. “Inaugurado na celebração de 50 anos de BH, o Acaiaca se torna ícone e materializa esse desejo de modernidade”, pontua.

Françoise defende que a edificação possui “valor cultural e afetivo muito grande”, principalmente, “por conta dos usos que ele abrigou”. Nos anos de 1950 e 1960 era frequentado pela elite e era lugar de efervescência cultural. “Havia uma boate que era frequentada por políticos e alta sociedade. Tinha a TV Itacolomi, que levava para lá artistas e jogadores de futebol”. E, claro, o “cinema foi muito importante para criar essa dimensão afetiva”. 

Além disso, já na década de 1970, o Teatro Universitário da UFMG se instalou no prédio. E, com ele, os intelectuais voltaram a marcar presença no lugar.

Adicione-se ainda elementos curiosos, como: o fato de possuir um abrigo antiaéreo, de seus elevadores serem os mais rápidos e de ser o prédio mais alto de BH. “Costumo dizer que é um mirante. Veja, a primeira transmissão da TV Itacolomi era desse ponto de vista. Tudo isso foi entrando para a memória afetiva da cidade”, pontua Françoise.

Por fim, impossível ignorar as duas esculturas indígenas. “É algo que remete a uma coisa meio nacionalista, construídos no momento do Estado Novo, esses índios documentam um aspecto da história não só de Belo Horizonte, mas de Minas Gerais e do Brasil como um todo”.

Nem tudo são flores

Por outro lado, o tombamento da fachada do Acaiaca é visto como problema por alguns proprietários de salas do prédio. “Há um conflito constante entre governo e proprietários, que discutem sobre quem deveria arcar com os custos de sua preservação”, escreveu Antônio Rocha Miranda em seu livro. Entre os desentendimentos, está o processo de limpeza da fachada. 

O autor, que é proprietário de salas no Acaiaca, conta que já participou do processo de lavagem com jatos d’água. Porém, desde que foi declarado patrimônio histórico, o método foi proibido. Em outro conflito, o Corpo de Bombeiros exigiu a instalação de novos corrimãos, mas o CDPCM-BH autuou a administração, já que o novo equipamento não era idêntico ao original.

Futuro

Apesar das dificuldades, Miranda prevê para o Acaiaca um futuro à altura do passado. Entusiasta pela revitalização do centro da cidade, “nos moldes do que acontece em outras capitais, como Paris, Barcelona e Buenos Aires”, ele sonha com uma Belo Horizonte “internacionalizada”.

“Precisamos oficializar o Acaiaca como ponto turístico da cidade”, insiste. Para isso, tem algumas sugestões, a começar pela iluminação. “Existe um projeto de iluminar o centro de BH com lâmpadas de led, queremos que isso aconteça. Também queremos ver a fachada do edifício, que é tombada como patrimônio, iluminada”, diz, inflamado.

O autor do livro, que foi porteiro do Cine Acaiaca aos 18 anos, torce pelo retorno da sala de cinema. “É algo que poderia ser abraçado, de uma maneira similar ao que foi feito no Cine Theatro Brasil Vallourec”, sustenta.

Extasiado pelas possibilidades, Miranda propõe a criação de um ônibus turístico, que circularia por Belo Horizonte, parando em alguns locais. Dentro do prédio, elenca atividades. “O público poderia visitar o abrigo antiaéreo, passear pelos elevadores, ter uma visão panorâmica da cidade”. Por fim, inspira-se na Jornada do Patrimônio, evento que acontece em São Paulo, quando são promovidos shows, palestras, oficinas e visitas guiadas a imóveis históricos. 

Afinal, “a construção de uma memória coletiva histórica é um dos principais instrumentos da constituição da própria nacionalidade de um povo”, arremata, em sua “Carta Aberta às Pessoas de Bem”.

Produção cultural sobre o Acaiaca

Livro Apaixonado pelo edifício Acaiaca, o empresário Antônio Rocha Miranda tem história umbilical com a construção. Sua primeira visita foi aos sete anos. Aos 18, trabalhou no Cine Acaiaca. Finalmente, de olho na aposentadoria, tornou-se proprietário de algumas salas. Seu livro, “Acaiaca: O Colosso Humano e Concreto”, lançado em 2016, demonstra como a “biografia” do prédio se funde à da cidade, além de dissecar a vida dos idealizadores do projeto.

Apelo Mais que a soma de todas as narrativas históricas e da investigação das lendas acerca do prédio, o autor pede que a sociedade se una em prol “desta joia de Belo Horizonte”.

Filme A produtora independente Pano Preto Filmes participa da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes com o curta-metragem “Acaiaca” (foto). O filme, que conta a história de uma cientista, “fala sobre a busca de nossa essência, de se conectar com o passado”, explica o diretor e roteirista Leonardo Good God, 36. “A história do edifício permeia a narrativa do curta. Então, é uma homenagem ao Acaiaca, mas também a Belo Horizonte”, diz. Curiosamente, o avô de Marlon Penido, 33, produtor e diretor artístico do filme, foi ascensorista no edifício e porteiro do cinema ali instalado. Feito com recursos próprios, a produção agora quer alçar voos mais altos: Cannes é um dos objetivos.

Colagem Impressionado principalmente pelas efígies de índios na fachada do Acaiaca, e pela lenda que dá nome ao edifício, o artista plástico Gustavo Gontijo, 25, quis criar uma colagem que fosse capaz de “relatar mais desse rosto que chama muita atenção no centro da cidade”, diz.
 
Arquitetura Entre as temáticas presentes nos trabalhos de Gontijo, a arquitetura é elemento recorrente. Na arte em homenagem ao edifício Acaiaca, nota-se que o minimalismo e funcionalismo da Art Déco ganham contornos rebuscados de uma estética mais próxima ao barroco nos traços do artista.