“Você pode colocar um perfume no jornal, para a matéria ficar mais atraente?”, brincam alguns dos presentes, revelando o tom que dominou um encontro pra lá de especial. O cenário foi um ponto emblemático: a praça Diogo de Vasconcellos – mais especificamente, na confluência entre a avenida Cristóvão Colombo e a rua Pernambuco. Quem conhece a história da capital mineira sabe: foi ali, na edificação que hoje abriga uma operadora de telefonia, que funcionou, de 1940 a 1977, o estabelecimento que acabou estendendo seu nome à região, a Padaria Savassi.

Pertencente aos irmãos Savassi (José Guilherme, Hugo e Geraldo) – descendentes de italianos (da região de Mantova) que, como tantos, vieram fazer a vida no país –, o local logo virou a meca de quem queria tomar chá ou café acompanhando as delícias que saiam do forno. Mas os hoje senhores de cabelos grisalhos que retornaram à praça na manhã da última quarta-feira (14), a convite do , no passado não acorriam ao endereço interessados apenas nos pães, doces e brioches. Pampulha

O lugar também era point de encontros de uma turma que marcou a história da cidade. E são justamente os casos vividos ali que preenchem as páginas de “A Turma da Savassi... Que Virou Nome de Bairro”, livro que o jornalista, escritor e compositor Jorge Fernando dos Santos lança no próximo sábado (24), na Livraria Quixote.

A ideia de colocar tantas histórias no papel, na verdade, partiu do músico Pacífico Mascarenhas, 82, figura icônica da cidade que cunhou, em uma de suas várias composições, o verso que até hoje representa o espírito que regia aqueles jovens rapazes: “Por onde quer que eu passe, acabo sempre é na Savassi”.

Lá vem história...

Antes de ser reconhecida como Savassi, a região em torno da qual o livro se espraia em memórias e fotos, vale lembrar, era parte do bairro Funcionários. Na verdade, quando a padaria Savassi foi fundada – em 16 de março de 1940 –, a hoje Diogo de Vasconcellos era, na verdade, praça Treze de Maio. Aliás, o nome da padaria, lembra Jorge Fernando na obra, seria esse – bloquinhos com o logotipo chegaram a ser impressos.

“Além de padaria e confeitaria, a nova casa funcionava como cafeteria, leiteria e casa de chá nos moldes europeus. Tinha prateleiras de jacarandá, cadeiras de estrutura metálica e 15 mesinhas redondas de metal cromado com tampos de mármore Carrara, o mesmo material do balcão”, diz um trecho da obra, acrescentando que, se de início a freguesia era majoritariamente formada por pessoas do entorno, logo vieram interessados de outros bairros. E “as estripulias da recém-nascida Turma da Savassi ajudariam a fixar o sobrenome italiano no inconsciente da cidade”.

Mas, afinal, quem eram os componentes dessa mítica Turma da Savassi? Bem, futuros médicos, empresários... De pronto, é preciso pontuar que o grupo era formado por representantes do sexo masculino por um motivo simples: à época, às jovens cabia o papel de “recatadas e do lar”.

Já aos homens, era permitido mais. Muito mais, embora os garotos da Savassi, inquietos que só, costumavam inclusive extrapolar os já flexíveis limites, chegando às estripulias citadas pelo autor. “Você se lembra, que tirávamos os parafusos das cadeiras do Pathé?”, lembra um deles, referindo-se ao cinema de rua que fechou suas portas em 1999.

O Pathé, aliás, esteve muitas vezes na mira das duas gerações que a Turma da Savassi abarcou. Pacífico Mascarenhas, por exemplo, que foi da segunda, lembra-se das vezes em que trocavam os letreiros dos filmes em cartaz. “E não permitíamos que homens de outros bairros fossem ao Pathé com as namoradas: eles tinham que nos pagar”, diverte-se, com o chiste, Murilo Cavalcanti, outro da turma.

Outra aprontação frequente, recorda Arthur Cavalcanti, era disputar quem colocava o pé mais alto na placa que havia em frente à padaria – no caso, Pacífico, pela altura, costumava vencer o desafio. Aliás, o ex-diretor social do Minas Tênis Clube, também notório colecionador de carros antigos, recorda-se de um antigo informante da turma.

Funcionário de uma distribuidora de cervejas que atendia a padaria, ele costumava revelar à turma sobre eventuais encomendas particulares da “loira”. Era, claro, sinal de alguma festa. Com o endereço em mãos, lá iam os integrantes da Turma da Savassi fazerem as vezes de “penetras”.

Mas, afinal, quantos eram, os integrantes dessa confraria? “Mais de 80 amigos”, responde Pacífico. “Hoje, ainda temos uns quase 30 vivos. A gente se encontrava de manhã, depois da aula, à tarde”. Ou mesmo à noite, como conta Clívio Gomes Luz, 92 anos (“e mais uns oito pela frente, para chegar aos cem. Cem com “c”). “Tinha pessoal do Noturno, o bonde que saia do Centro e descia no abrigo para o papo final (do dia). E era uma coisa sistemática”.

Sim, brigas, havia. Mais externas que internas, ressalve-se. “Geralmente, aconteciam aos domingos”, explica o médico Mauro Freitas, 83. Mas no frigir dos ovos, o pêndulo da balança apontava para os momentos felizes, como endossam o Rogério Tamm e o engenheiro Paulo Pires de Vasconcellos. “A melhor lembrança? Todos os anos que passei aqui”, responde, de pronto, o primeiro, do alto de seus 85 anos. “Era uma turma excelente”, confirma o segundo.

Tanto que, até hoje, mesmo não morando mais na região, alguns remanescentes fazem questão de reavivar as lembranças. Caso do médico Geraldo Carvalhaes. “A Savassi fica no coração, marcou muito. De vez em quando, venho e fico andando a pé na região para matar a saudade do tempo de juventude”.

Estripulia

“A rapaziada também lançava desafios ousados para a época, como o de baixar as calças e andar com a cueca samba-canção à mostra. Vencia a disputa aquele que ficasse por mais tempo com a cueca de fora, para escândalo de senhoras e senhoritas. Consta que uma jovem pudica simulou um desmaio...”

Turma da Savassi 

Da esq. para a direita, Antônio Luiz, Geraldo Carvalhaes, Arthur Cavalcanti, Pacífico Mascarenhas, Rogério Tamm, Murilo Cavalcanti, Mauro Freitas, Paulo Pires e Clívio Gomes Luz, alguns dos integrantes do grupo que se encontrava diariamente em frente à panificadora.

Entre o passado e o presente

A região hoje conhecida por Savassi tinha como epicentro a praça Treze de Maio, hoje Diogo de Vasconcelos. No livro, Jorge Fernando conta: “Fundado em 1896, um ano antes da inauguração da nova capital, o bairro fora planejado para abrigar as repartições públicas e os servidores transferidos de Ouro Preto”.

Um dos marcos da região era o abrigo do bonde da Pernambuco, que ficava na praça, situada na confluência das ruas Pernambuco e Antônio de Albuquerque com as avenidas Cristóvão Colombo e Getúlio Vargas. Detalhe: nem todas as vias tinham o nome que atualmente ostentam. A Getúlio Vargas, por exemplo, era Paraúna – só em novembro de 1938 é que o governador-interventor Benedito Valadares decidiu homenagear o nome por trás do Estado Novo.

A inauguração da padaria Savassi, em 1940, trouxe uma efervescência à região e, na esteira, formou-se a Turma da Savassi, que agora tem sua história registrada em livro pelo jornalista. “Era uma turma muito arteira”, diz Jorge Fernando, lembrando que, se a maioria dos integrantes era formada por rapazes da chamada classe média, também havia espaço para os filhos de comerciantes. “Vamos lembrar que naquela época não havia televisão”. Dispensável dizer, muito menos internet. Mesmo com as potencialidades da rádio, as ruas eram, portanto, bastante atrativas – principalmente para os mais jovens.

“Tempos do óleo Glostora, da loção Aqua Velva, do Leite de Rosas”, pontua o jornalista. A maioria das casas do Funcionários tinha muro baixo, quintal nos fundos, varanda e jardim na frente. “Às 22h em ponto, ecoava pela região o toque de recolher soprado pelo corneteiro do quartel do Corpo de Bombeiros, no alto da rua Piauí. A vizinhança dormia o sono dos justos, na certeza de que era feliz”.

Ao Pampulha, Jorge Fernando lembrou que, para ingressar na turma, eram necessários alguns rituais. Mas sim, havia muitos interessados. Mesmo porque, a graça vigorava, em brincadeiras como o “pau-de bosta”, quando dois rapazes simulavam uma briga, sendo que um deles levava, à mão, um pau cuja ponta estava disfarçadamente suja de fezes. O outro dizia: “Não brigo com você porque está com esse pedaço de pau na mão”. O “adversário”, pois, estendia o pau a uma pessoa do entorno – e o desavisado ficava com a mão emporcalhada.

Dias atuais

Tendo tido a missão de retratar tempos áureos, Jorge Fernando é um dos que lamentam ver a região, hoje, sofrer com os tempos modernos. “A crise econômica contribuiu para desfigurar o bairro, que, nos últimos anos, perdeu muito de seu charme”. A Savassi, cumpre frisar, já foi alvo de várias campanhas visando acentuar todas as suas possibilidades. Os mais velhos, por exemplo, vão se lembrar do slogan “A Savassi é um Amor”, que teve até jingle.

A jornalista e consultora de moda Natalie Oliffson, do movimento Savassi Criativa, entende que a região é um grande caldeirão, que une moradores, empresários, turistas, passantes. “E, ampliando o conceito para além de comércio, temos, naturalmente, muitas empresas – sobretudo, empresas jovens, que estão se instalando lá, muitas delas relacionadas à economia criativa”.

O Savassi Criativa, explica Natalie, tem direcionado ações no sentido de sensibilizar o poder público e a população da capital mineira para os cuidados que a região demanda. “Lá ainda é uma grande vitrine da cidade, tudo o que acontece reverbera, para o bem ou para o mal, de maneira forte”.

Uma delas, diz Natalie, é promover eventos de rua – ou apoiar os propostos, desde que atendam a um princípio básico. “Que compreendam que, com qualquer intervenção, você está falando, antes de tudo, com o morador e com o comerciante, partes que estão sempre lá”, frisa. Entre as ações que receberam o endosso do movimento está “A Savassi É da Gente”, que fecha alguns quarteirões para o trânsito aos domingos, para que as vias sejam usadas pela população para o lazer.

Região teve mudanças sociais e estruturais

Quando Aarão Reis (1853– 1936) concluiu a planta arquitetônica da nova capital mineira, a região da hoje Savassi estava contemplada em seu projeto. O lugar, com suas praças e quarteirões delimitados, não foi uma formação espontânea, mas, ao longo dos anos, passou por várias intervenções que mudaram a paisagem e o público que frequenta aquele pedaço da região Centro-Sul de Belo Horizonte.

A última grande alteração na configuração do bairro se deu em 2011. A praça Diogo de Vasconcelos, ou praça da Savassi, teve seus quatro quarteirões fechados, nas ruas Pernambuco e Antônio de Albuquerque. O lugar ganhou fontes, jardins, bancos e nova iluminação. O cruzamento entre as avenidas Cristóvão Colombo e Getúlio Vargas passou a ter travessias elevadas. À época, foram investidos R$ 10,4 milhões nas obras feitas pela prefeitura.

Com a nova paisagem, uma das intenções era impulsionar o comércio, bem como a movimentação de pessoas pela região. “À medida em que você melhora o espaço público, em que são criadas mais áreas de recepção para as pessoas ficarem e circularem, você traz mais conforto. Mas, no caso da Savassi, a inauguração dos shoppings centers trouxe uma concorrência muito grande aos lojistas da região, visto que o público é praticamente o mesmo que vai aos shoppings”, avalia Flávio Carsalade, arquiteto e urbanista, além de professor da escola de Arquitetura da UFMG.

Além disso, o fechamento de alguns pontos icônicos, como o Cine Pathé (em 1999), e a saída da própria padaria Savassi do bairro (em 2011), contribuíram para que houvesse mudanças na região. A própria reforma de 2011 teria atuado, involuntariamente, neste sentido. Autora do estudo “Savassi: Transformações Urbanas de um Espaço Turístico na Belo Horizonte do Século XXI”, a turismóloga Ana Cristina Magalhães Costa constata: “Desde a sua criação, a (hoje) Savassi passou a ser, por exemplo, um espaço utilizado para atividades como caminhadas (por ser uma espécie de extensão da praça da Liberdade). Mas, após a revitalização, houve uma diversidade de públicos e de interesses. Quando há interferência espacial em um ambiente, cria-se uma nova roupagem, mas é preciso analisar os públicos que já existiam. Por exemplo, antes da revitalização, já havia, lá, uma população de rua. Após o fechamento dos quarteirões, isso se tornou mais presente, principalmente no entorno dos bares”.

Ela frisa que a revitalização do cine Pathé, assunto que volta e meia vem à tona, poderia colaborar para que o charme que a Savassi já ostentou voltasse – o espaço, vale lembrar, era dedicado ao cinema de arte. “Isso ajudaria, na verdade, na busca de trazer esse significado do que é a Savassi. O que não é tarefa apenas de uma prancheta, de um desenho bonito e arquitetônico. Há uma questão social, muito mais profunda, que está dentro dessas transformações”, finaliza. 

Números

População De acordo com o Censo 2010, a Savassi conta com 11.772 moradores e 5.005 domicílios, o que representa uma média de 2,35 habitante por cada residência.

Bares Em outubro de 2017, a Prefeitura de Belo Horizonte fez um levantamento sobre o total de bares que havia na capital mineira. A Savassi foi um dos bairros com mais estabelecimentos: 235, ficando em segundo lugar. Em primeiro foi o centro, com 704 bares, e, em terceiro, o Santa Efigênia: 192.